Elas lutam por espaço nas arquibancadas e foram às ruas pela democracia

Mulheres que amam futebol e frequentam espaços esportivos, são impedidas de opinar, de torcer, de jogar. Na sociedade, historicamente, elas também foram (e ainda são) impelidas de adquirir direitos fundamentais e ocupar espaços ainda restritos.

No último domingo (31/5), a capital paulista foi palco de uma grande onda de protestos em favor da democracia e contra o governo comandado pelo presidente Jair Bolsonaro. O ato foi organizado por torcidas de futebol – organizadas e antifascistas – e as mulheres que fazem parte desses movimentos também marcaram presença.

Movidas por um ideal, as mulheres que estiveram na maior avenida de São Paulo, pediram por democracia porque entendem que essa luta é importante na sociedade.

“Tinham mulheres de diversas torcidas (no protesto) e eu achei que essa nossa presença lá foi importante para também demarcar espaço do ponto de vista também da política, porque a gente faz toda uma luta política para estar dentro do estádio e da arquibancada. Só que não é só o futebol que é excludente para as mulheres, a política muitas vezes também é. E ter mulheres participando de manifestações de rua, já que historicamente as mulheres também foram muito importantes no combate ao fascismo, é uma forma da gente se ver representada lá”, contou a estudante Marina, de 24 anos, palmeirense e que esteve presente na manifestação.

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(Foto: Pam Santos)

O desfecho desse protesto não foi nada pacífico. Depois de caminharem pela principal avenida de São Paulo, os torcedores – em sua maioria – entraram em conflito com um pequeno grupo de apoiadores do presidente. A PM agiu entre os manifestantes usando bombas de efeito moral, balas de borracha e muita gente saiu ferida desse embate. 

A pauta do protesto organizado por torcedores dos quatro grandes clubes do estado (Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo) era muito clara: reforçar a importância dos direitos democráticos da população, sem levantar bandeira partidária. Até mesmo instruções sobre o vestuário os torcedores receberam.

Dadá Ganam, de 38 anos e torcedora de uma das torcidas organizadas do Corinthians, reforçou esse pedido. “A ideia éramos ir todos de preto, sem roupas de times e evitar qualquer tipo de confronto. Não haviam só torcedores de futebol ali, mas esse era um momento importante, inclusive de politizar a torcida.”

Resistência feminina

“Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”, disse Simone de Beauvoir, escritora, filósofa e ativista política francesa. E é em meio à pandemia – onde diariamente mais de mil pessoas morrem por conta do Coronavírus – que as mulheres também correm riscos onde deveriam estar seguras: dentro de casa.

Em abril, quando o isolamento social imposto pela pandemia já durava mais de um mês, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 deu um salto: cresceu quase 40% em relação ao mesmo mês de 2019, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH).

(Foto: Rafael Vilela)

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Marina, torcedora palmeirense, revelou que o que a motivou a ir ao protesto foi o sentimento angustiante de indignação política que vem sentindo durante a pandemia. Mas ela também entende que, como mulher, era importante marcar presença nesse ato. “Ainda mais com o discurso que o governo tem de ignorar os problemas da pandemia, a gente vê as mortes e as doenças, mas sabemos que quem mais sofre com isso é a galera que está na periferia. Mas, para além dessas questões de saúde, a gente tem visto o aumento da violência doméstica nesse período por conta da pandemia e por falta de políticas públicas por parte do estado”, declarou.

E é claro que o futebol reproduz diversos cerceamentos que a mulher já está acostumada a viver no dia-a-dia. Na arquibancada, as torcedoras sofrem violência, assédio, machismo, racismo e LGBTfobia. Dentro de torcidas organizadas, as mulheres assumem papéis restritos, não têm voz ativa e, muitas vezes, são proibidas de frequentar estádios em outros estados e participar de viagens e caravanas.

Dadá tem experiência em frequentar esse espaço, e por mais que ele seja excludente, ela segue resistente. E foi cobrando os líderes de sua torcida que ela garantiu sua presença no último ato. “Quis estar lá porque na primeira manifestação que aconteceu, poucas mulheres estavam presentes, a maioria era homens. Como eu sabia quem eram as pessoas que estavam à frente disso, falei com eles e cobrei sobre a falta da presença feminina na manifestação. Eles me falaram que o primeiro chamado aconteceu de última hora, que organizaram entre eles e que para o próximo, fariam uma reunião para convocar todo mundo”, detalhou.

Cordão formado por mulheres no protesto (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

No último domingo, a torcedora corinthiana fez parte – ao lado de cerca de 15 mulheres – de um cordão de isolamento onde elas deram os braços e assumiram a linha de frente do protesto. “Eu ouvi um cara falar assim atrás de mim: ‘quem são essas minas aí na frente? Não é perigoso, não?’ Eu já virei pra trás, na hora, e falei: ‘quer ficar do meu lado, irmão?’ E aí um outro homem precisou afirmar que iríamos ficar ali para que pudesse legitimar nossa presença na frente do coletivo”, contou. Esse cordão foi formado por mulheres, nem todas de organizadas e algumas de movimentos como o MTST e MST.

Dadá é mãe de um garotinho de 4 anos e mesmo sabendo do risco que corria, fez parte da manifestação. Marina não é mãe, mas valorizou as mulheres que enfrentam jornadas exaustivas de trabalho. “Não é fácil ser mulher no Brasil. Significa ter, muitas vezes, uma jornada dupla ou tripla de trabalho, significa ter uma responsabilidade com os filhos que muitos homens não tem. E mesmo assim a gente está na luta, a gente está no estádio por uma paixão que nos move. Seja por amor ao clube, ou pela indignação que eu senti por ter ido até a Paulista no domingo. Temos que ser valorizadas e lutar para conseguir nossos espaços. Acredito que isso faz parte tanto da política dos clubes como da torcida como um todo, de enxergar as mulheres no futebol, não só na torcida, mas também no futebol feminino que é algo urgente para se pensar.”

As duas estavam presentes no momento em que a Polícia Militar entrou em confronto contra os manifestantes e segundo elas, a repressão foi fora do comum. “Estávamos somente reivindicando nosso direito de democracia e teve aquela repressão desproporcional contra nós. Enquanto do outro lado, pessoas com arma branca, reivindicando ditadura, nazismo e fascismo, mas com proteção amigável. Isso mostra o papel autoritário e o braço armado do estado”, disse Marina.

Dadá e seu filho Sócrates (Foto: Acervo pessoal)

Dadá recorda que a confusão começou quando um pequeno grupo de apoiadores do presidente apareceram pelas paralelas do MASP, todos fardados com roupas militares, hasteando bandeiras e indo pra cima dos manifestantes.

“Eles (apoiadores do Bolsonaro) passaram entre nós e começaram zombar, provocar. Foi aí que aconteceu o estopim e a polícia já estava na nossa frente, nos batendo. Eu estava ali, não tinha jeito de atravessar por conta da polícia que já estava fazendo cordão na gente, com bomba e tiro. E aí eu pensei em revidar, em ir pra cima para sair dali porque não estava mais conseguindo respirar por conta de tanta bomba, tiro e gás de pimenta na nossa cara.”

Dadá chegou na Avenida Paulista às 11h e saiu de lá pouco depois das 17h. “Quando estava indo embora, sentido Consolação, várias bombas estavam sendo atacadas em nós, de muito longe. As bombas caiam na minha frente, eu estava andando mais rápido porque se eu corresse, eu ia morrer sufocada.”

Buscando espaço na arquibancada e na sociedade

Engana-se quem pensa que o lugar delas não é no estádio, que o futebol é apenas coisa de homem. Esse tipo de discurso não cabe mais nos dias atuais. E há números que comprovam a crescente presença feminina nos estádios, como por exemplo o levantamento feito pelo Esporte Clube Bahia em agosto de 2018. O estudo mostrou que 69% das torcedoras do clube têm vivência de estádio e ainda assim, 23% delas declararam ter sofrido algum tipo de discriminação nas arquibancadas pelo simples fato de serem mulheres.

Para Dadá, a presença das torcedoras na manifestação é mais uma maneira de demonstrar o quanto elas são importantes e necessárias, seja para lutar pela democracia nas ruas como para empunhar a bandeira de seus times do coração na arquibancada.

“O momento de combater alguma coisa dentro das arquibancadas, das torcidas, seja onde for, é em outro lugar, em outro momento. Agora, é importante a mulher estar atuando, a torcedora estar presente pelo momento de democracia e aí então, mostrando que estávamos presentes nessa hora de combate, na linha de frente, depois levaremos a pauta lá pra dentro.”

(Foto: Rafael Vilela)

“Foi um momento de extrema importância estar ali, estar naquele cordão. Foi forte para essa nossa luta também. Uma coisa acaba levando a outra. Espero que as outras minas que ali estavam, entendam que essa nossa presença pode ser usada em nosso favor dentro do estádio. Espero que elas tenham essa mesma visão”, completou a corinthiana.

Marina, que critica o alto preço do ingresso e o cerco imposto aos torcedores por parte da política do Palmeiras, reforça a importância da mulher em momentos de reivindicação. “Nos últimos anos, vem se fortalecendo a construção de coletivos feministas na sociedade, até mesmo na torcida do Palmeiras tem alguns grupos só de mulheres, tem iniciativa de mulheres, de denúncias de assédio, tem campanhas políticas do clube e das torcidas. Eu, como mulher em uma arquibancada, me coloco muito em uma posição de, sempre que possível, denunciar os casos de opressão, machismo, racismo. LGBTfobia, mas também tento fortalecer outras mulheres e de resistir, porque esse também é nosso espaço.”

Para a palmeirense, o ato não foi pequeno e foi fundamental para colocar em pauta o debate sobre democracia e as denúncias do governo. “Sinto que estamos em um momento aqui no Brasil como se um vulcão estivesse em erupção, prestes a explodir. E espero muito que esse último domingo tenha sido um passo para a nossa explosão.”

Um novo ato está marcado para o próximo domingo (07) em São Paulo. Marina e Dadá pretendem participar novamente.

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