Mesmo com ajuda da CBF, clubes negam a jogadoras ajuda de custo de R$500

Foto: Divulgação

Há 20 dias, a CBF começou a transferir para as contas de 52 times de futebol feminino uma doação para ajudá-los a manter os compromissos com suas atletas e comissões técnicas – ao menos era esse o objetivo do dinheiro segundo nota divulgada no site oficial da entidade. As 36 equipes da série A2 (segunda divisão) receberam R$ 50 mil e as 16 da série A2 (primeira divisão) receberam R$ 120 mil. O cálculo foi feito com base na média da folha salarial dos clubes dessas divisões e equivaleria a dois meses de pagamentos.

Mas dos 52, seis times hesitaram em usar o dinheiro para pagar suas atletas. No universo do futebol feminino, em que a grande maioria das equipes não mantém contratos formais com as jogadoras e não fazem qualquer registro da prestação de serviço delas, algumas equipes se aproveitaram disso para fazer outro uso da verba recebida da CBF. Sendo assim, atletas que recebiam uma ajuda de custo de R$500 até R$ 1.000 ficaram até agora sem um centavo em meio à paralisação dos campeonatos.

O Audax (série A1) foi o primeiro a dizer explicitamente que não recebeu orientação da CBF “de que esse dinheiro precisaria ser gasto no futebol feminino”. E alegou que nada disso estava escrito no recibo enviado pela entidade. Foi preciso um forte trabalho de convencimento por parte do coordenador de competições de futebol feminino da CBF, Romeu Castro, para que os dirigentes da equipe se comprometessem a acertar o pagamento das jogadoras.

O Juventus (série A2) também não pagou as atletas. A explicação para isso foi a demora para enviar o documento assinado à CBF para que o dinheiro fosse liberado. O recibo havia sido perdido, supostamente, e depois foi encontrado. Em conversa com a reportagem, o responsável pela equipe feminino, Claudio Roberto Boaventura afirmou que faria o pagamento nesta semana, tão logo o dinheiro caísse na conta do clube.

O Juventus sempre foi um time tradicional para o futebol feminino (Foto: Divulgação)

“A verba da CBF é destinada para o futebol feminino, porém eu tenho que saber utilizar da maneira correta. Tenho comissão técnica, não é só atleta. Não sei por quanto tempo (esse dinheiro) vai dar. Se ficar mais dois meses começa a complicar”, explicou o dirigente, que disse ter perdido 70% dos patrocínios da equipe feminina nessa parada. “A gente não vai entrar nessa loucura, vamos fazer algo estruturado. Ninguém é obrigado a ficar. Acredito que elas merecem receber mais, mas não posso fazer algo que a gente não consegue dar conta”.

Sport treinava em gramado alto e mal cuidado em 2019 (Foto: Leo Caldas / Folhapress)

Entre os times de camisa que também não honraram os pagamentos das jogadoras estão Sport e Vitória. Os dois clubes cortaram o orçamento para o futebol feminino nos últimos anos e mantém equipes quase que amadoras oferecendo ajuda de custo mínima com alimentação e transporte (menos de R$500 por mês). A reportagem apurou que as atletas de ambas as equipes (o Sport, da série A2, recebeu R$ 50 mil, e o Vitória, da A1, recebeu R$120 mil) também não haviam recebido nada até agora.

O blog tentou contato com representantes dos dois times e não obteve resposta. Segundo a CBF, ambos se comprometeram a pagar a ajuda de custo às jogadoras após cobranças da entidade.

Vitória é o único time nordestino na primeira divisão do Brasileiro feminino; clube entrou com equipe sub-17 para a disputa em 2020 por causa de corte de gastos (Foto: Divulgação)

Casos mais graves

As situações mais complexas se encontram nas equipes menores, como Auto Esporte, da Paraíba, e Santos Dumont, do Sergipe. É preciso lembrar que a ajuda da CBF não exigiu nenhuma prestação de contas dos clubes ou comprometimento em gastar o dinheiro com os salários das jogadoras. Sendo assim, times que nunca haviam sequer sonhado em receber uma quantia dessas de dinheiro acabaram tirando proveito da situação.

Jogadoras do Santos Dumont chegaram a se manifestar publicamente nas redes sociais denunciando o clube por não ter pago nada a elas desde que a série A2 do Brasileiro foi paralisada em meados de março, logo após a primeira rodada do campeonato. A equipe contava com a ajuda de um patrocinador para se manter e até hoje tem dependido de depósitos dele feitos diretamente para as jogadoras para que elas não passassem fome nessa parada. “Por causa da pandemia, os pais de muitas atletas não estão trabalhando e elas estão passando necessidade. Ele (patrocinador) enviou um dinheiro para ajudar algumas”, disse uma das jogadoras.

Os salários ali também eram ajuda de custo, sem contrato formalizado entre as atletas e o clube. Os pagamentos variavam de R$500 a R$1.000. O Santos Dumont, aliás, é um clube que não tem exatamente uma sede em Aracaju. Foi fundado nos anos 2000 e só tem a equipe feminina disputando uma competição nacional. “Ele (presidente) é funcionário da prefeitura de um bairro que se chama Santos Dumont, em Aracaju. Nesse bairro, tem uma quadra e um campo, ele administra essa quadra e esse campo lá. Não existe clube físico, só de fachada. Não existe nada no futebol masculino, não disputam competições. Só no ano passado, a gente buscou uma parceria para montar um time feminino e disputar o Sergipano”, disse um dos responsáveis pela equipe feminina.

Santos Dumont foi campeão sergipano em 2019 (Foto: Divulgação)

A equipe, de toda forma, é registrada e recebeu os R$50 mil da CBF, mas não repassou nada às atletas até agora. Procuramos o presidente da equipe, Jogival Melo Passos, mas ele não atendeu, nem respondeu as mensagens.

Segundo as jogadoras, até houve uma proposta de pagar às atletas e comissão um valor de R$1.000, o que somaria R$30 mil. Mas elas questionaram o que seria feito com o restante (R$20 mil) e o presidente teria afirmado que utilizaria o dinheiro para montar um novo time.

Já o Auto Esporte, time tradicional da cidade de João Pessoa, conquistou a vaga na A2 ao ser campeão paraibano em 2019 e fez um acordo em que as jogadoras ganhariam por partida disputada no torneio nacional – R$100 por jogo. O clube pagou o valor referente ao primeiro jogo da competição e, depois da parada do campeonato, as atletas não receberam mais nada. As que vinham de fora receberam a passagem para voltar para casa e só.

Foto: Raniery Soares/FPF-PB

Em contato com a reportagem, o presidente do Auto Esporte, Helamã Nascimento, afirmou que ainda não havia recebido o dinheiro da CBF e que aguardava a liberação do valor pela Federação Paraibana para fazer o repasse às jogadoras.

“A Federação Paraibana ficou responsável por receber e repassar. Esse cheque chegou essa semana, vou pegar segunda-feira. Já tenho toda lista de atletas, as contas delas para depositar. O valor será repassado por regime de competência”, disse o presidente. “Repudio a atitude dos outros clubes que não repassaram”, reforçou. As atletas, porém, afirmam que nenhum contato foi feito com elas ainda a respeito do pagamento.

Num cenário de tamanha vulnerabilidade, em que mesmo na “elite do futebol feminino”, a situação da maioria das jogadoras é de instabilidade profissional (dos 52 clubes que disputam competições nacionais, só 20 são profissionais ou estão em processo de profissionalização). Sem contrato, por mais que se possa entrar na Justiça e reivindicar direitos, o processo demoraria algum tempo e elas ficariam desamparadas nesse período tão difícil. Por isso, mais do que doar dinheiro, seria importante a CBF pensar em como garantir que essa ajuda chegasse às atletas, especialmente porque a gestão do futebol no Brasil está longe de ser exemplo de honestidade e responsabilidade. A cobrança segue para que a verba da entidade seja destinada a quem mais precisa.

 

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