Quando o assunto é esporte a motor, as referências femininas ainda são poucas. Seja no jornalismo, nas pistas, equipes e arquibancadas, as mulheres ainda precisam encontrar meios para se conhecer e dividir o interesse pela categoria que ainda é tão restrita aos homens.
A jornalista Nathalia De Vivo e a engenheira mecânica Erika Prado têm em comum uma amiga e a paixão por velocidade. Mas elas só foram descobrir isso depois que se conheceram pessoalmente e por acaso na “pista”, durante o GP Brasil de Fórmula 1.
A Nathalia é jornalista do Grande Prêmio, um dos maiores sites de esporte a motor e, junto com a Erika, faz parte do Girls Like Racing, um movimento que nasceu de um grupo de WhatsApp formado apenas por mulheres que amam velocidade e que se reúnem para acompanhar o esporte e marcar presença nas provas e treinos. E tudo começou em 2017, quando a engenheira estava no GP de Interlagos e era a única mulher em um grupo de cerca de 15 homens. “Aquilo me despertou pra um questionamento: ‘por que eu sou a única mulher aqui?'”, contou ao blog.
“A gente não quer ser a única mulher entre os caras”
Depois de ser a única mulher em meio aos homens em 2017, no GP de Interlagos do ano seguinte, a história estava prestes a se repetir. Ainda assim, Erika começou a andar sem parar por todo o setor A do Autódromo e percebeu que naquele espaço, ela conhecia muitas pessoas, mas havia um distanciamento entre as mulheres.
“Pensei: ‘pô, por que eu conheço toda essa galera, mas as mulheres não se conhecem entre elas? Por que a gente não consegue sentar juntas pra assistir a uma corrida?”
Com a ajuda de uma amiga – que conheceu ali em meio da torcida -, elas criaram um grupo de WhatsApp para que mais mulheres pudessem se conhecer e incluir outras. E assim o grupo foi crescendo, mas a explosão veio quando o narrador Sérgio Maurício mencionou a existência do grupo durante uma transmissão no SporTV.
“Essa minha amiga Liciane conhecia o Sérgio e pedimos para ele mencionar sobre o Girls Like Racing, deixando nosso contato no Twitter para que as mulheres nos procurassem. Depois disso, foi uma loucura, saltamos de 50 para 111 membros no WhatsApp e hoje somos cerca de 220 mulheres”, contou Erika.
A engenheira revelou que a criação do grupo também foi muito importante para que as mulheres tivessem seu espaço para opinar sobre automobilismo e outras categorias com mais aceitação. “Não víamos as meninas opinando em grupos mistos porque os homens quase nunca interagiam com as opiniões delas. Quando surgiu o nosso grupo, elas começaram a opinar e tem muita mulher com um conhecimento incrível. Chega a ser absurdo, em dia de corrida, são cerca de 3.000 mensagens trocadas.”
+ De telefonista a CEO: conheça Claudia Rohonyi, diretora do GP Brasil de F1
Com a turma formada, a amizade saiu das pistas e se estendeu para encontros pré-corridas e até viagens para acompanhar Formula Indy, Stock Car e Moto GP. “Fomos nos conhecendo e fazendo amizade. O grupo é pra falar de corrida, mas virou um movimento para elas entenderem que temos voz nessa área. Além de ser um lugar pra gente falar de corrida, tem também uma rede de apoio para diversos outros assuntos que enfrentamos no dia-a-dia.”
Erika cursava Engenharia de Produção, mas acabou mudando para a mecânica porque sonha em trabalhar com velocidade. Hoje, ela trabalha em uma categoria paulista chamada Fórmula Vee, onde é analista de dados e de performance dos pilotos e dos carros em pista.
“Meu sonho é viver de corrida, trabalhando na parte mecânica. Sinto que é um espaço que está crescendo para as mulheres. Quando comecei a fazer cursos na área, só tinha eu de mulher na sala, depois de um tempo fiz um curso de análise de dados voltado para corrida, tinham mais 4 mulheres. Estamos evoluindo, antes você não via mulher dentro de um paddock, hoje você vê muitas”, afirmou Erika que também comanda o Dupla Aerodinâmica, um podcast sobre automobilismo.
“Eu quero cobrir as mulheres e é isso que eu vou fazer”
Essa frase é da jornalista Nathalia De Vivo, que tem o pai como um grande fã de automobilismo. Ela era a companhia dele durante as transmissões de Fórmula 1 na televisão, mas era mesmo apaixonada por surf. Mas, bastou começar a carreira trabalhando na editoria de velocidade para ela se apaixonar de vez.
“Fiz uma entrevista para trabalhar um site de automobilismo e não entendia nada do assunto e o cara que acabou me contratando perguntou: ‘o que você sabe sobre a Fórmula-1 de 2012? E eu respondi que só conhecia o Vettel. Acho que ele gostou da minha sinceridade e acabou me aceitando” , revelou ao blog.
Nathalia tem 27 anos, é repórter do site Grande Prêmio há seis anos. Trabalhando com Juliana Tesser, editora de moto, ela acabou descobrindo uma predileção por Moto GP. “Eu nunca vi alguém entender tanto de Moto GP como ela. A Juliana me acolheu totalmente, me inspira e ensina sempre. E eu acho que por ela gostar tanto, acabei pegando essa paixão pra mim e é algo que eu venero.”
Trabalhando com esporte a motor há algum tempo, Nathalia passou a se dedicar com mais afinco à presença feminina nos esportes de velocidade de um ano pra cá. “As mulheres estavam crescendo cada vez no esporte a motor e falei que iria cuidar disso. Eu trabalho em um lugar grande, com tanta visibilidade, pensei que poderia usar isso pro bem e espalhar uma coisa que me interessa e que precisa ganhar cada vez mais atenção”, contou.
E, para além do trabalho que ela realiza no site, decidiu também começar um projeto pessoal focado só nas mulheres que atuam nessa área. Em fevereiro desse ano, deu início ao “Elas na Pista“, seu canal no YouTube.
“Eles não comentam sobre o que eu estou falando”
Nathalia – assim como diversas jornalistas – já enfrentou cantadas e machismo durante o exercício de sua profissão. “Já teve piloto que deu em cima de mim, já teve piloto que quis me arranjar de namorada para um amigo, já teve gente que fui entrevistar e me disse que só falaria comigo se eu desse meu telefone. É uma coisa muito chata que a gente acaba passando e no começo eu ficava muito mal”, revelou.
Além do seu canal YouTube, a jornalista também produz conteúdo em vídeo para o Grande Prêmio e ali os comentários que recebe quase nunca dizem respeito a qualidade seu trabalho. “Já recebi comentários dizendo que mulher não deve ficar falando sobre isso, ou então eles escrevem ‘como você é bonita’. Eles não comentam sobre o que eu estou falando, sobre o conteúdo. Eles falam que sou bonita, perguntam se quero casar com eles. Cara, não tô aqui pra isso, sabe?”, revela.
Elas estão na pista!
Assim como tem surgido mais mulheres nas redações jornalísticas, elas também estão ocupando as pistas, a gestão do esporte a motor e se desenvolvendo em espaços femininos, como é a W Series. Para Nathalia, a categoria feminina de automobilismo é importante para fomentar a presença delas em um espaço ainda tão masculino.
“No começo fui contra, achava que ia segregar as mulheres. Mas pelo contrário, a W Series tem sido uma vitrine e feito um trabalho incrível para mostrar as meninas pro mundo do esporte a motor e do esporte em geral. A Alice Powell (piloto inglesa), por exemplo, correu na W Series e agora está na Jaguar iPace eTrophy, que é a categoria mestre da Fórmula E. Estamos vendo, cada vez mais, as mulheres ocuparem esses lugares. Demorou, mas está começando a ter essas mudanças.”
+ Por que não há mulheres na Fórmula 1: capacidade ou oportunidade?
Esse é um grande passo para que no futuro mais mulheres possam competir lado a lado com os homens. “Já entrevistei diversos atletas que falavam que o físico não tem nada a ver, que mulheres conseguem competir com homens em igualdade porque o fator do carro é o que mais conta. Já tivemos mulheres que disputaram contra homens e venceram corridas, como a Danica Patrick, na Indy. A própria Bia Figueiredo, que hoje está na Stock Car, mas já venceu corridas na Indy Lights. Defendo muito, mas acho que vai demorar um tempinho para mulheres aparecerem na Fórmula 1”, afirmou. Ver essa foto no Instagram
Uma publicação compartilhada por Bia Figueiredo (@biaracing) em 16 de Dez, 2019 às 2:28 PST
Nathalia reforça que na Fórmula 1 a gente já consegue ver pilotos de teste mulheres, como Tatiana Calderon e Jamie Chadwick (campeã da W Series), mas para além das pistas, o universo feminino também tem ampliado. “Em 2015, mais ou menos, a Monisha Kaltenborn era da Sauber e foi a 1ª mulher da Fórmula 1 a ser chefe de equipe. Depois dela, vieram a Claire Williams (da Williams), a Susie Wolff (da Venturi na FE), a Rachel Loh (engenheira de Bia Figueiredo na Ipiranga Racing, na Stock Car), então, aos pouquinhos já conseguimos ver essa mudança.”
+ Nova categoria é louvável, mas objetivo ainda deve ser ter mulheres na F1
Sonhando um dia em cobrir a temporada da Fórmula 1, Nathalia tem como referência nomes masculinos, como Reginaldo Leme e Galvão Bueno, mas se for falar de uma mulher, é claro que o exemplo é Mariana Becker. “Ela transmite a notícia de um jeito leve, acho ela muito boa e vamos falar que ela faz algo que é o sonho de qualquer um que é cobrir a Fórmula 1 in loco o ano inteiro. Ela é muito a minha inspiração e quero ser como ela um dia.”