Diante da pandemia de coronavírus, a preocupação com as áreas mais vulneráveis do país é constante. Nas comunidades, onde o saneamento básico não chega, e a fome é uma realidade constante, o efeito da Covid-19 pode ser devastador. E para amenizar isso, o próprio futebol está servindo como ferramenta para conscientizar e combater a doença.
No Complexo de Manguinhos, comunidade de 36 mil habitantes da zona Norte do Rio de Janeiro, o time “Estrelas do Mandela” está liderando uma campanha de arrecadação de alimentos, itens essenciais de higiene e álcool gel para serem distribuídos entre os moradores. Projeto tradicional da região- existe desde 2002 -, o time reúne meninas e mulheres e trabalha o empoderamento feminino por meio do futebol. Nas últimas semanas, Gagui Silva, técnica e responsável pelo projeto, decidiu fazer algo para colaborar com o combate ao coronavírus na favela.
“Quando começou o isolamento pelo coronavírus, eu comecei a receber mensagem de pais das meninas do time falando das dificuldades que estavam tendo. Uma dessas famílias tem três meninas no projeto e são nove pessoas morando na mesma casa, dividindo o cômodo. Então eu vi essas dificuldades e aí a gente decidiu começar a campanha para mobilizar as pessoas a doar”, explicou a treinadora.
Foi assim que nasceu a “Ação Solidária Estrelas do Mandela contra o coronavírus” em parceria com a associação de moradores local. Eles estão arrecadando alimentos para montagem de cestas básicas, além de água, sabonetes, álcool gel, máscaras e luvas.
“Nesse momento, o maior problema tem sido a falta de água, né, que já é um problema constante na região. Além da falta de alimento e de itens de higiene pessoal. A gente até tem tomado cuidados diferentes para a própria distribuição, para não ficar passando em todos os lugares de uma vez só”, explicou.
A solidariedade dos próprios moradores para ajudar quem mais precisa em Manguinhos – além de algumas parcerias – já permitiu ao Estrelas do Mandela conseguir material suficiente para doar mantimentos para 43 famílias. De início, o plano foi focado em ajudar as famílias das meninas que participam do projeto (são 57 no total), mas agora a ideia é ampliar para conseguir atender mais e mais pessoas da comunidade.
“Nós, da favela, somos colocados como marginalizados, excluídos. Mas eu vejo que a favela vai mostrar outro viés nesse momento, a solidariedade vai ser muito maior. A própria população da favela está apoiando as famílias das comunidades nesse momento. A favela vai sobreviver por nós mesmos. Pelas nossas estratégias de resistir. Se depender dos políticos, a favela fica sempre excluída”, pontuou Gagui Silva.
Futebol e empoderamento
O Estrelas do Mandela nasceu na Favela do Mandela, que fica no Complexo de Manguinhos, zona Norte do Rio, em 2002. Era um time feminino que criou uma tradição na comunidade e foi crescendo até abrigar, a partir de 2015, o projeto “As Minas da Bola”, que une a prática do esporte ao empoderamento feminino.
Hoje, fazem parte dele 53 meninas de 7 a 13 anos de idade que se reúnem duas vezes por semana na quadra para jogar bola. Só que além da prática esportiva, o projeto promove oficinas e discussões sobre gênero, raça e pluralidade cultural.
“Nas oficinas, falamos de saúde, de empoderamento, da beleza da raça (a maioria das meninas são pretas), da cor. Elas não têm mais vergonha de estar jogando futebol. E ter esse lugar pra treinar já é uma conquista. Antes, os meninos queriam entrar no horário para jogar também. Aí a gente explicava que era o horário do time feminino. Eles iam lá pra cima e ficavam gritando que elas não sabiam jogar e tal. Foi uma construção com eles também para garantir esse espaço seguro pra elas”, disse Gagui Silva.
O futebol ali é uma ferramenta de inclusão para as meninas na sociedade. Porque muitas que chegam ao projeto se sentem excluídas pela cor, pelas características dos seus cabelos, pelo ambiente onde vivem.
“A gente já viu menina que não queria treinar porque o cabelo ficava suado e ficava todo pro alto. Essa questão do cabelo é muito frequente aqui, porque elas se sentem feias por causa dele. E eu falei pra elas: o nosso cabelo cresce para o alto. E não é pra ter vergonha dele, não. A gente tem vergonha do nosso cabelo, da nossa cor, do nosso nome. E aqui, nas discussões com elas, a gente tenta mudar essa percepção. O futebol também empodera, elas se sentem fortes, capazes”, observou a treinadora.
A comunidade de Manguinhos e as Estrelas do Mandela já se preparavam para, pela primeira vez, disputarem a Taça das Favelas com uma equipe feminina neste ano. Ainda não se sabe quando a competição vai poder começar (diante da situação de pandemia), mas enquanto o futebol fica parado, o time mantém o trabalho em equipe para vencer o coronavírus na comunidade.