Técnica quebrou barreiras nos EUA e voltou após 20 anos para desafio no Sul

Lessa foi eleita como melhor treinadora em 2015, nos EUA (Foto: Divulgação)

Depois de quase 20 anos, Christiane Lessa está de volta ao Brasil. A garota de 16 anos que começou a jogar futsal e passou em uma peneira no Vasco – na mesma época em que Marta defendeu o clube de São Januário -, trocou seu país pelos Estados Unidos em 2001, onde jogou e treinou equipes profissionais e universitárias.

Sua carreira como treinadora começou a caminhar por lá em 2008, comandando o sub-20 do Washington Spirit (NWSL) e depois, o sub-20 do Shandong na China. Na Noruega, foi auxiliar técnica do Avaldness, passou pelo Sky Blue dos EUA e, logo depois, se tornou a 1ª mulher a ser auxiliar técnica de um time masculino de futebol na liga americana profissional; o Atlanta Soccer Club.

Depois de enfrentar tantos desafios em terras estrangeiras, Lessa encontra agora – como ela mesma definiu – o maior desafio de sua carreira: comandar o time feminino do Foz Cataratas, que está na Série A-2 do Campeonato Brasileiro e sonha em voltar à elite do torneio nacional.

“Foi a melhor decisão que poderia ter tomado e o melhor time que poderia treinar. É claro que tem dificuldade financeira aqui, eles tinham um patrocínio grande antigamente, mas como o time caiu de divisão, as coisas ficaram mais difíceis. Mas eu adoro desafios, não que tenha que ser assim pra sempre, mas quando eu cheguei aqui, não tive nenhuma surpresa. Nada assusta mais depois que você trabalha em vários cenários”, afirmou a treinadora em entrevista às dibradoras. 

Chris Lessa no Avaldsness da Noruega (Foto: Divulgação)

Lessa desejava voltar ao Brasil há algum tempo e em 2019, chegou até a negociar uma possível volta para assumir o comando do Rio Preto, mas como o clube se desfez por falta de verba, o plano foi adiado. Em dezembro, ela começou a conversar com o presidente do Foz, Gezi Damaceno, e recebeu a proposta. Desde fevereiro Lessa está aqui e seu contrato é curto, ela deve ficar na equipe até o final da A-2, mas deseja continuar o trabalho. 

“Pedi pra ter um contrato de pouco tempo porque não sabia o que ia encontrar aqui, mas se seguirem do jeito que está, tirando o episódio do Coronavírus, claro, eu adorei a cidade, o clube, o tratamento. Sei que a vida do treinador no Brasil não é fácil, vim com a mentalidade de ficar até o Brasileiro acabar, mas se o Gezi gostar do meu trabalho, eu adoraria ficar, porque ainda teremos o Sub-16 e Sub-18 para jogar”, afirmou.

Montagem de elenco e o primeiro desafio do ano

A tradicional equipe do Foz Cataratas tem em seu histórico um título e um vice-campeonato da Copa do Brasil, um vice-campeonato na Libertadores da América, além dos nove títulos do Campeonato Paranaense.

Em 2019, o Foz Cataratas fez uma parceria com o Athletico-PR e acabou sendo rebaixado no Brasileirão para a segunda divisão. A parceria aconteceu por conta da obrigatoriedade de equipes masculinas da Série A de manterem uma equipe feminina, mas o acordo acabou no final do ano e, com isso, a equipe do Paraná perdeu grande parte de seus recursos e até cogitou não participar das competições nesta temporada. 

Lessa afirmou que, enquanto não havia chegado, foi o presidente quem começou a montar o time. Inicialmente, Gezi trouxe 14 garotas e a treinadora gostou do que recebeu. “Adorei as jogadoras que ele trouxe. Por exemplo, a Pamela Dutra, que era reserva no Cruzeiro em 2019 e agora é minha capitã, com 22 anos. Também tenho comigo a lateral-direita do São Paulo, campeã brasileira da A2, a Jaja. Também temos três meninas que retornaram do ano passado e todas elas com uma mentalidade muito boa”, contou.

A técnica, é claro, também deu seu toque especial ao elenco. Sob aprovação do clube, ela trouxe Thaynara, uma garota que, segundo ela, será a futura Catarina Macario (brasileira de 20 anos que desde criança mora nos Estados Unidos, foi eleita a melhor jogadora da liga universitária e se naturalizou americana). “Foi o pai da Catarina que me deu o contato dessa menina do Maranhão que se chama Thaynara. Também trouxe a Millene que é uma baita jogadora, jogou quatro anos nos Estados Unidos e um no Japão. Ela estava aqui solta e fez um golaço no final de semana. E trouxe também a Eduarda Chagas que jogou quatro anos atrás numa faculdade dos Estados Unidos”, revelou ao blog.

Além delas, Lessa também trouxe três americanas para o Brasil: Mariah Powers (que defendeu a seleção americana sub-15 e sub-17 e em 2016 jogou pelo Oregon State PAC 12, na mesma conferência que a Catarina Macario), Shanoska Young (que atuou pela seleção da jamaica entre 2015 e 2019) e Junique Rodrigues (que jogava pela Georgia Southern University NCAA D1). Elas ainda não estão aptas para jogar porque os registros nacionais de estrangeiras não ficaram prontos. “Ainda não posso usá-las, mas vão fazer um baita efeito no meu time”, reforçou.

Lessa (de boné) com o elenco do Foz Cataratas (Foto: Divulgação)

A comissão técnica de Lessa é enxuta. Ela conta com um preparador físico (Brito Dornelles) e um treinador de goleiras (Everton Bizu). Mas o grande nome de seu time é, ninguém menos do que Tânia Maranhão. Hoje, com 45 anos, a atleta que defendeu a seleção por mais duas décadas e foi duas vezes vice-campeã olímpica, é a inspiração para todas as jogadoras do Foz, e claro, para a treinadora.

Eu nem sabia que a Tânia se lembrava de mim, porque eu joguei com ela na base do Vasco, na época da Marta. Eu era a menina que ficava vendo o treino delas e depois eu entrava em campo. Ela me respeita mais do que qualquer atleta já me respeitou, não tenho como explicar. Ela disse que veio por minha causa, mas não deve ser, não é possível”, revelou emocionada.

Em conversa com a reportagem, Tânia assumiu que aceitou o convite do Foz – deixando o Botafogo e o Ceará pra trás – por conta da treinadora. “Estou muito feliz, sinto uma união muito grande da equipe. Independentemente da minha história, existe uma hierarquia e tem que respeitar e escutar quem está no comando. A Lessa está mostrando um excelente trabalho e eu tento ajudar com uma opinião, uma dica. Falei para as meninas do grupo para aproveitarmos essa chance de trabalhar com alguém que ficou nos Estados Unidos por 20 anos. Tenho certeza que faremos bonito nesse campeonato”, disse a experiente zagueira.

Goleada na estreia 

O Foz estreou no final de semana contra o Operário-MT e venceu bem, por 4×0, em casa. Mas não tem sido fácil para Lessa estudar o adversário e montar a estratégia de sua equipe. “Peguei dicas conversando com uma atleta que está com a gente e jogou no Operário e perguntei quem era a melhor jogadora, qual o lado mais fraco, o mais forte, o que que fazem melhor e etc. Também tinha olhado em um site de scout alguns jogos do ano passado, mas o Operário não tinha jogo! Aí peguei um highlights do campeonato mato-grossense e foi isso. Independentemente do adversário, a gente tem que tentar impor nosso jogo”, contou. 

Lessa com parte do elenco (Foto: Divulgação)

Por conta do Coronavírus, a Série A2 do Brasileirão foi interrompida, mas Lessa tem aproveitado essa pauta para preparar melhor sua equipe. “Não  tem desculpa. Tenho apenas cinco jogos pra classificar e depois jogar o mata-mata.

Durante o período em que está no Brasil, Lessa quer aproveitar para concluir as Licenças A e Pro para treinadores que a CBF promove. “Pretendo fazer a A, adoro o curso. Não posso prometer, mas a ideia era fazer em maio. Me sinto atrasada sem fazer esse curso e ele é caro. Espero que a CBF dê uma ajudinha pra mim”, contou.

Das lições que aprendeu nos Estados Unidos, a técnica deseja implantar aqui o controle emocional nas atletas. “Não acho que nossas atletas são mal preparadas fisicamente, mas somos muito fracas emocionalmente e isso pode ser preparado no treinamento. É o treinador quem implementa situações de jogo dentro de campo e trabalha para que sua mentalidade faça você ganhar força de onde não tem”, disse.

Ela usou como exemplo recente a virada que a seleção feminina sofreu em 2017, contra os Estados Unidos, no Torneio das Nações, quando vencia por 3 a 1, relembrou as derrotas do Brasil nos Jogos Olímpicos de 2004 e 2008 também para as americanas e a final do Brasileiro do ano passado entre Corinthians e Ferroviária.

“Temos que estar ligadas o tempo todo. No meu primeiro jogo, eu ganhava de 3×0 e estava preocupada. Meu preparador falava que estava controlado e, depois disso, a gente fez um pênalti e perdi uma jogadora. Sorte que a bola foi pra fora, mas e se elas fazem 3×1? Se eu não estivesse preocupada com isso, meu time ia acomodar, ligar o freio e ficar tocando a bola no nosso campo e aí crescem as chances delas fazerem gol. Então, a mentalidade que eu trago é essa, olho aberto sempre”, resumiu.

+ Só 2 mulheres comandam times do Brasileiro; gestão também é masculina

Assim como acontece na Série A1, além de Christiane Lessa, poucas mulheres estão no comando técnico das equipes de futebol. Mas a treinadora entende que, depois de ter quebrado barreiras nos EUA e Noruega, ela chega ao Brasil para ocupar um espaço que ainda é tão carente da presença feminina e pode ser inspirador para outras mulheres.

“Penso no futuro, mas focada no presente. Se o presidente do Foz me disser que só tem verba para me bancar até o final do ano, eu quero seguir aqui e ajudar essas meninas. Não tenho pensamento de ir pra um clube grande, ganhar mais, ficar numa vitrine e não desenvolver a vida das atletas. Eu vim aqui pra mudar o cenário dessa equipe.”

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