O técnico Jürgen Klopp gesticulava desesperado à beira do gramado enquanto o Liverpool conseguia mais uma vitória sob seu comando na Premier League e, a poucos metros do banco de reservas, estava Natalie Gedra, repórter da ESPN.
A jornalista – que ia a jogos toda semana escondida do pai quando ganhou sua primeira carteirinha da ACEESP (Associação dos Cronistas Esportivos de São Paulo) ainda no primeiro ano de estágio; que cobria as partidas menos prestigiadas da Copinha sob o sol escaldante; que ousou pedir demissão do maior veículo de imprensa do país achando que sua carreira no Jornalismo tinha acabado; que procurou emprego em cafés de Londres para conseguir se bancar durante seu mestrado, – olha para o treinador alemão e reconhece o privilégio de estar acompanhando tão de perto os recordes de um time tão histórico.
Não foi à toa que ela chegou até ali. O trabalho, a coragem e a ousadia levaram Natalie Gedra ao ápice da carreira jornalística quando, na verdade, ela tentava fugir da profissão e encontrar outro rumo na vida. Melhor para o Jornalismo e para a repórter. O trabalho exímio como correspondente da ESPN na Inglaterra faz Natalie ver a história sendo escrita sob seus olhos. E com tanta competência e simpatia, até mesmo os melhores do mundo reconhecem seu talento – Pep Guardiola, José Mourinho e o próprio Jürgen Klopp foram alguns dos que elogiaram a repórter brasileira.
“Tem situações em que você se sente muito privilegiado. De cair a ficha na hora e você falar: caramba, estou presenciando isso. Cobrindo essa campanha do Liverpool mesmo, eu sempre penso: daqui a alguns anos, todo mundo vai lembrar desse time, e eu estava lá em todos os jogos. Tive a sorte de presenciar a do Manchester City, superando os 100 pontos, e agora a do Liverpool. Estou entrevistando um dos maiores treinadores da história de um dos maiores times do mundo”, contou a jornalista às dibradoras.
“É claro que vez ou outra eu paro pra pensar nisso e é muito legal poder viver essas coisas. Acho que não podemos perder esse brilho que o Jornalismo traz. Poxa, eu fiz tudo. Eu comecei cobrindo os jogos menos badalados da Copinha. Então eu realmente valorizo todos os passos da minha carreira, desde os jogos de Copinha até os de Premier League. Ter feito caminho completo me ajuda a olhar e falar: caramba, que incrível.”
Ida para Londres
O mais inusitado é que, quando Natalie partiu para essa aventura, o objetivo era outro: fugir do Jornalismo. Depois de ter se “formado” como repórter de campo na Rádio Globo, ela ganhou experiência na TV na Bandeirantes, foi para a Globo e, em 2016, resolveu deixar o emprego “estável” que tinha ali para tentar outra carreira.
“Eu estava bem na carreira. Mas eu não estava onde eu queria estar. O ano de 2016 foi muito marcante pra mim. Foram 3 grandes eventos, Olimpíada, Copa América e Eurocopa. Eu cobri a Olimpíada de São Paulo e, nos outros dois, eu não fui. Eu pensava: eu me sinto preparada pra fazer mais. Eu entendo a mentalidade de uma empresa grande, porque no fundo eu estava fazendo coisas grandes. Estava nas transmissões mais importantes, nos jornais de rede, eu entendo tudo isso. Eu sou muito grata pelas oportunidades que eu tive, aprendi muito. Mas eu queria fazer mais e eu sabia que ia demorar pra eu fazer mais lá”, contou Natalie.
“Eu queria explorar outras oportunidades também. Aí pensei que eu poderia procurar outra coisa fora do Jornalismo. Fui buscar um mestrado e achei um em gestão esportiva, porque queria sair do Jornalismo, mas não do esporte. Deu certo, passei e fui. Pedi demissão com muita tranquilidade. As pessoas ficavam um pouco assustadas, tipo: ‘como assim você vai pedir demissão da Globo? Ninguém faz isso’.”
Natalie se mudou para Londres com o marido para estudar e, logo no primeiro mês por lá, começou a buscar empregos que ajudassem a manter os custos do casal na Europa. Conseguiu um de garçonete num café e trabalhou ali por dois meses. Fazia tudo, desde servir, até recolher os lixos. Até que um dia, surgiu uma oportunidade inesperada: a de cobrir a Premier League pela ESPN, detentora dos direitos de transmissão do torneio no Brasil.
“Eu queria procurar coisas fora do Jornalismo. Lembro que fiz entrevista de estágio na Federação Inglesa de Esgrima. O cara me dispensou falando que eu era ‘muito qualificada’ para o emprego”, conta, aos risos. “Aí fui trabalhar num café. Foi uma puta experiência legal. Trabalhar servindo te dá uma outra perspectiva das coisas”.
Cobrindo os melhores do mundo
O marido de Natalie havia trabalhado por muito tempo na ESPN, e o canal fez contato com os dois para tê-los nas coberturas da TV pela Europa. Ele era o câmera/editor, e ela a repórter. A estreia foi num Barcelona x Real Madrid e foi aí que a ficha de Natalie começou a cair.
“Lembro que minha primeira cobertura foi Barcelona x Real Madrid. Num sábado, começo de dezembro. Eu pensando: caramba, uma semana atrás, eu estava limpando a lixeira do café (sábado era o dia que fazíamos isso), hoje eu cobri Barcelona e Real Madrid. Pra mim, isso foi muito uma lição. Acho que quando você faz as coisas de coração aberto, os caminhos se abrem, as coisas dão certo.”
Cobrindo a Premier League, a cada dia eles tinham uma nova “ficha” caindo pelo privilégio que estavam tendo de ficar tão perto com alguns dos maiores nomes do futebol mundial. De repente, até um ‘pisão’ de Ibrahimovic virava motivo de orgulho, de comemoração.
“Meu primeiro grande entrevistado pós jogo foi o Mourinho. Lembro de olhar pra ele e pensar: caramba, é o Mourinho, ele existe. E foi super boa a entrevista. Aí eu saio no corredor e meu marido diz: ‘o Ibra acabou de passar aqui, pisou no meu pé’. E a gente tudo bobo das coisas que estávamos vivendo”, diz.
Em quatro anos na Europa, Natalie já cobriu dezenas de jogos da Premier League, da Champions League e fez inúmeras entrevistas importantes. Uma delas no ano passado repercutiu no mundo todo, quando Mourinho respondeu uma questão capciosa que só ela, entre os outros jornalistas internacionais, teve coragem de perguntar.
“O Salah estava voando na temporada, e todo mundo dizia que o Mourinho tinha dispensado ele no Chelsea. Aí perguntei sobre isso e ele disse: ‘vou te dizer uma coisa que nunca falei pra ninguém. Eu não fui o cara que dispensou o Salah, eu fui o cara que contratou o Salah. A saída dele foi decisão do clube'”. A resposta dele para Natalie repercutiu em jornais do mundo todo.
Pep Guardiola é outro entrevistado que já virou figurinha carimbada para Natalie. Ela diz que ele é difícil, porque não gosta de falar com jornalistas, mas nunca se negou a responder nenhuma pergunta. O cara da vez pra ela agora tem sido Jürgen Klopp, técnico responsável pelo recorde de vitórias do Liverpool nesta temporada.
“Gosto muito do Klopp também. Foi o treinador que eu mais entrevistei. Ele trata todo mundo bem, é muito bom com a imprensa. Como ele já me conhece, eu vejo que ele fica à vontade nas entrevistas. Na última do ano, ele chegou e me deu um abraço, falou Feliz Ano Novo. Isso vindo de um alemão é um acontecimento”, brincou ela.
Vendo o Liverpool fazer história na Premier League, Natalie reconhece que esse é um dos times mais incríveis que ela já viu jogar tão de perto. “A intensidade deles é ainda maior quando você vê o jogo da beira do campo”, conta.
“O dinamismo do futebol deles é muito legal. Eles criaram uma marca. Uma maneira deles muito única de jogar que é muito legal de assistir. Eu vi uma vez uma expressão de um comentarista da ESPN falando em ‘futebol autoral’. E achei isso muito correto. Porque o Liverpool é um futebol autoral. Pode não ser o melhor, não gosto de comparar épocas, treinadores, estilos. Mas é muito rico e muito atraente. É muito legal ver a forma como ele (Klopp) reinventou as funções de laterais com Alexander Arnold. A forma como ele consegue ter um time criativo sem um camisa 10. Aí você tem o Firmino, qual é a posição dele? Ser o Firmino. O Alisson é um absurdo o que ele está fazendo, a qualidade técnica. Esse Liverpool é muito rico individualmente e coletivamente”, analisou.
Além de merecer muito o que está conquistando no Velho Continente, Natalie Gedra é inspiração para muitas outras mulheres que sonham em trabalhar com Jornalismo Esportivo um dia. Que bom que ela não desistiu da carreira e segue até hoje desafiando a máxima que sempre lhe disseram sobre “futebol não ser coisa pra mulher”.
“Fico muito orgulhosa vendo que hoje tem tanta mulher querendo desafiar esses padrões e não sucumbir às regras. A gente por muito tempo aceitou essas coisas né? ‘Ah, é assim mesmo’. Não, não é. Não tem que ser. A gente também tem direito de ocupar esses espaços”.