A temporada de 2019 foi especial para a atacante Glaucia. Defendendo o Santos, a jogadora – que precisou enfrentar lesões, depressão e ganho de peso – marcou 19 gols e deu 18 assistências. As Sereias da Vila ficaram pelo caminho nas principais competições do calendário (Brasileiro e Paulista), mas a camisa 25 ganhou destaque.
A atleta se despediu do time da Baixada Santista no final do ano passado. Com propostas de clubes brasileiros e também da Coréia – país onde jogou em três equipes diferentes – Glaucia vestirá a camisa do São Paulo em 2020. Letal dentro da área e muito participativa nas partidas, a jogadora de 26 anos – que já chamou a atenção até de Marcelo Adnet – sonha em dividir o ataque com sua grande inspiração: Cristiane Rozeira (apesar da camisa 11 ainda não ter definido onde jogará em 2020).
“Pra falar a verdade, meu maior sonho é jogar com a Cristiane. Eu sou fã, sou apaixonada por ela, eu imitava o que ela fazia dentro de campo. Assisti às jogadas dela no Pan-Americano de 2007 quando eu ainda nem jogava e foi aí que eu comecei a olhar o que ela fazia e tentava me inspirar. Seria uma realização muito grande pra mim jogar em um clube ou na seleção com ela”, declarou em entrevista exclusiva às dibradoras.
Premiada no final de 2019 como uma das melhores atacantes do Campeonato Paulista e Brasileiro, Glaucia comemorou a conquista, creditando seu sucesso ao clube que a trouxe de volta ao seu país. “O Santos me proporcionou esse momento que eu estou vivendo. Estava na Coreia ano passado e meio desaparecida. Então, voltar ao Brasil e ver o quanto cresceu a modalidade e no meu primeiro ano de volta ser uma das craques é algo genial. Já joguei o Paulista em anos anteriores e nem premiação como essa tinha”, revelou.
Do handebol para o futebol
Glaucia nasceu na Zona Leste de São Paulo, é a mais velha entre 4 irmãos. Seus primeiros dribles aconteceram no asfalto, como é bastante comum na história de tantas jogadoras. A predileção por bolas em vez das bonecas fez a garota deixar a mãe preocupada ao vê-la entre os meninos no meio da rua.
“Minha mãe tinha receio porque o preconceito era grande e eu só ficava na rua. Acordava 7h da manhã pra jogar bola com os meninos e ela não deixava. Mas ela viu que eu gostava, percebeu que não tinha perigo, então apoiou. Era mais uma preocupação, medo do que as pessoas poderiam fazer comigo”, contou.
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Na escola, era goleira de handebol. E foi por conta dessa habilidade que ela foi até o São Bernardo Futebol Clube para fazer um teste. O ano era 2007, mas ela foi atraída pelo futebol. Pensou que sua carreira seria debaixo das traves, mas se enganou. Seu talento era justamente outro: marcar gols.
Glaucia foi aprovada e rapidamente começou a jogar como titular pelo time do ABC até 2010. No ano seguinte, a primeira grande chance veio ao defender o Centro Olímpico. O time era comandado por Arthur Elias e foi vice-campeão paulista naquele ano (perderam a final justamente para o Santos). Ali aos 18 anos, a jogadora mostrou seu cartão de visitas: ao lado de Debinha (sua companheira de time) foi artilheira da competição com 24 gols.
Coréia, lesões e depressão
O bom desempenho chamou atenção do Jeonbuk, da Coreia do Sul e lá foi Glaucia, aos 19 anos, tentar a carreira fora do Brasil e enfrentar seu primeiro grande desafio na profissão. “Achava que seria bom, só que quando cheguei lá… Era muita pressão e eu era muito nova. Claro, a gente tem que lidar com essas coisas, mas eu nunca tinha saído do Brasil, então foi uma mudança muito grande e eu não tinha uma cabeça preparada. Acho que eu conheci o presidente do clube mais do que qualquer pessoa, de tanto que eu pedia pra ir embora. Eu chorava e ele falava que eu tinha que cumprir meu contrato”, revelou Glaucia.
E foi durante um ano que ela sofreu – fisicamente e psicologicamente – as maiores transformações de sua vida. “Eu tive depressão, dormia só duas horas por dia, mudou tudo. Se eu te mostrar uma foto minha daquela época você não acredita que sou eu, eu era fina e muito forte. Ali eu comecei a engordar. Acordava de madrugada, treinava demais, não dormia, tomava remédio e eles não me davam um acompanhamento, não estavam nem aí. E aí eu me machuquei quando estava jogando pela sub-20. Eu era a camisa 9 da seleção quando me lesionei a posterior da coxa por excesso de peso e muita coisa foi mudando. Tive que me readaptar com o corpo que eu tinha.”
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Seleção brasileira 2010 sub17 ♥️
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Com o fim do contrato, Glaucia voltou ao Brasil em 2013. Jogou a Copa do Brasil pelo Centro Olímpico e depois defendeu o São Caetano durante o Paulista. No ano seguinte, foi para o São José, que na época tinha um timaço formado por craques como Rosana, Andressa Alves, Formiga e Poliana. “Na época, eu estava bem, tinha emagrecido, mas no quarto jogo eu lesionei o LCA (ligamento cruzado anterior) do joelho e fiquei o ano todo parada”, recordou.
Depois de se recuperar, novamente a Coréia fez uma nova proposta para Glaucia. Foi então a vez do Red Angels contratar a centro-avante e, achando que daria a volta por cima, ela aceitou o desafio. A temporada de 2015 foi apenas regular e, mais uma vez, ela retornou ao Brasil e ao São José comandado por Emily Lima no ano seguinte. Em uma coincidência infeliz, Glaucia teve uma nova lesão de LCA, desta vez no joelho esquerdo, e novamente se afastou dos gramados para se recuperar.
Em 2017, Glaucia jogou metade do ano pelo Iranduba e outra metade pelo Sport, onde foi campeã pernambucana. E pela terceira vez recebeu nova proposta da Coréia. O time da vez foi o KSPO e a jogadora conseguiu o que tanto esperava. “Em 2018 fui artilheira do time e terceira maior marcadora da Liga Coreana. Dei a volta por cima que eu queria. Esse clube valeu a pena jogar porque é muito familiar e foi muito bom pra mim”, revelou.
Glaucia afirma que na Ásia conseguiu aprimorar alguns pontos de seu futebol que a ajudaram a ter a ótima temporada no Santos em 2019. “Na Coréia o jogo é mais rápido, então você vai aperfeiçoando seu passe, porque lá é exigido isso, então o que eu tinha um pouco de dificuldade, eu fui melhorando bastante. E quando voltei, a Emily me deu total liberdade pra fazer o que eu sei mesmo que é fazer gol.”
A contratação de Glaucia foi um pedido de Emily e quando chegou no time santista, a artilheira contou com todo o apoio da treinadora na época, mas precisou brigar pela titularidade. “Fui buscando meu espaço até mostrar pra ela que eu tinha que jogar. Eu queria muito atuar com ela (Emily) que é super inteligente e isso pra mim foi muito importante nessa caminhada. Pra mim foi o ponto chave ela ter acreditado em mim quando todo mundo não acreditava, então eu tenho muito que agradecer a ela mesmo”, contou.
Buscando a melhor forma física e seleção brasileira
Glaucia conta que os comentários sobre o excesso de peso já a incomodaram bastante e que ela também se cobra por uma melhor forma física. “Para algumas pessoas é fácil (perder peso), mas não é assim. Em 2011 eu era super magra e super forte. E eu entrei em depressão em 2012, no meu primeiro ano na Coréia, eu tinha 19 anos e aí mudou tudo. Meu organismo mudou totalmente e pra voltar ao que eu era, está me custando muita coisa e eu tô atrás, não é por falta de tentar”, contou. “Eu foco muito no que eu estou fazendo hoje para que as coisas aconteçam, o que vai ser amanhã eu já não sei. Mas espero que o que eu esteja fazendo hoje faça com que as pessoas enxerguem meu potencial também.”
E é claro que depois de um ano incrível ela também pensa em defender o Brasil, mas sabe que precisa alcançar certo nível de preparo físico. “Não saio da realidade. Eu ainda tenho que entrar muito mais em forma e aparentemente, quem me vê, fala que sou gordinha e isso e aquilo, só que eu tenho muito mais massa magra do que gorda e acaba que muitos priorizam a imagem da atleta do que o potencial que ela tem”, afirmou.
“Eu acredito que a parte física é o que tem me barrado na seleção. Eu confio no meu potencial e no meu trabalho, eu sei o que eu faço. Estava na expectativa de ir para uma convocação? Estava. Mas acabo perdendo as esperanças porque no momento em que eu estava atuando, não fui chamada. Então desanima. A seleção é momentânea, então tento me dedicar ao máximo ao meu clube que é quem me paga, mas ficaria feliz sim de ir para a seleção”, completou.
Pode ser que 2020 seja ainda melhor do que o ano passado foi para a Glaucia. Mas quando pergunto à ela se 2019 foi o melhor ano de sua carreira, a centroavante nega e brinca. “Meu melhor ano foi em 2011. Em 2019 eu apenas corri certo.” E como correu certo!