Não é regra, mas num primeiro dia de trabalho, o mais comum é o novo empregado receber votos de boas-vindas dos colegas. Com Tamanna Siddiquee, porém, a recepção foi um pouco inusitada.
Após anos trabalhando como repórter esportiva em Bangladesh, ela foi contratada para ser comentarista de críquete em uma rádio do país. Em sua primeira transmissão, mal pôde ouvir sua voz. Haveria algum problema com o retorno? Na verdade, o problema estava ali do lado dela: os homens que transmitiam o jogo desligaram seu microfone. Afinal de contas, onde já se viu mulher comentando críquete? No segundo jogo, a estratégia foi diferente: dois caras se posicionaram bem na sua frente para impedi-la de enxergar o jogo. Em uma terceira ocasião, trancaram as portas da cabine e não a deixaram entrar na transmissão. Foram muitas as tentativas de fazê-la desistir. Nenhuma deu certo, e hoje, dois anos depois, ela já trouxe mais mulheres para trabalhar na área.
No caso de Rajes Paul, o primeiro dia de trabalho como repórter esportiva do The Star na Malásia veio com votos de boas-vindas, mas com uma aposta escondida. Os homens da redação apostaram “quanto tempo ela iria durar ali”, se apenas alguns dias ou talvez alguns meses. São 22 anos no mesmo jornal, colecionando prêmios de jornalista esportiva do ano e agora assumindo o papel de chefe da editoria de esportes.
Asma Halimi viveu seu pior dia na profissão não no início da carreira, mas talvez no auge, quando cobria a Copa do Mundo de 2010 na África do Sul. Trabalhando para um jornal da Argélia, ela esteve na zona mista da partida e, quando foi tentar entrevistar o jogador de seu país, levou um tapa na cara. Detalhe: ela estava grávida. Ninguém ao redor fez nada. A justificativa do atleta para a atitude foi porque “o jornal dela não costumava falar bem dele”. A história passou batida pela mídia do mundo inteiro em plena Copa. Ainda assim, ela seguiu na profissão e hoje é editora-chefe de um dos principais jornais esportivos da Argélia, comandando uma equipe de 50 repórteres.
Com Georgina Tunny, da Austrália, aconteceu o que já é de praxe para toda mulher que atua nessa área. Ela chega para entrevistar um jogador de basquete e ele a mede de cima a baixo para depois da entrevista dizer: “nossa, não é que você entende de basquete?” Já Isabel Boltenstern, da Suécia, viu um colega inventar uma mentira sobre o trabalho dela numa cobertura esportiva para prejudicar sua carreira. Na Nigéria, Cecilia Omorogbe ouviu de um dos principais treinadores do país que “ele não dá entrevista para mulheres”. Nos Estados Unidos, Vicki Michaelis recebeu a ligação de um jogador da NBA na madrugada da véspera de um jogo quando estava hospedada no mesmo hotel do time convidando-a para “alguns drinques”.
Não é muito comum ver homens passando por situações como essas. Muito provavelmente, se você parar pra conversar com 50 homens de 50 países que atuam nessa área, nenhum deles terá um caso similar.
Mas quando se reúnem 47 mulheres dos cinco continentes (das mais diversas partes deles), são centenas de histórias para contar sobre os desafios que elas enfrentam para trabalhar no Jornalismo Esportivo. Poderíamos pensar que são histórias tristes pelos tantos absurdos que todas elas já ouviram ou viveram para exercer sua profissão. Mas a boa notícia é que elas permaneceram. Usaram cada uma dessas frustrações para se fortalecer e abrir caminho para que outras pudessem vir ocupar esse mesmo espaço que tanto insistem em nos negar.
Muitos dizem que esses abusos que finalmente as jornalistas esportivas passaram a denunciar ou ao menos a falar sobre são “mimimi”, que nada disso acontece de verdade, que é frescura. Aqui estão 47 histórias de países completamente diferentes, de históricos completamente distintos e de mulheres que não se conheciam – todas enfrentando as mesmas dificuldades e o mesmo preconceito (apenas em níveis diferentes).
‘Você entende mesmo’
“Falem um pouco sobre as histórias de vocês”, instigou a professora de Jornalismo Esportivo da Universidade de Oregon (EUA) a uma sala cheia de mulheres pioneiras nesta carreira em seus respectivos países. Ali tinha de tudo. De jornalistas experientes trabalhando há mais de 20 anos na área, até recém-formadas. Os discursos se repetiam: “Sou uma das únicas mulheres a trabalhar com jornalismo esportivo no meu país”. “Fui uma das primeiras”. “Sou a primeira e a única”.
Em todos os 47 países ali presentes, ser mulher no jornalismo esportivo significa ser minoria e significa, principalmente, ter sua capacidade questionada milhares de vezes ao longo de um único dia. Na Bielorrússia, a maior especialista de hóquei no gelo não viajou para cobrir o mundial porque “não iriam mandar uma mulher para o torneio”. Na Grécia, as análises da comentarista passam por um crivo muito maior daqueles especialistas de internet: “o que essa mulher acha que entende de basquete?”. Na Índia, uma zona mista cheia de homens virou desculpa para alguns deles passarem a mão onde não deveriam na única repórter mulher que ali estava.
Nada disso é coincidência. Aliás, há uma só coincidência aí: o fato de todas elas serem mulheres. E lugar de mulher não é no esporte, é a mensagem que aprendemos desde pequenas em todos os lugares do mundo. Um programa internacional de liderança (International Visitor Leadership Program) promovido pelo governo dos Estados Unidos convidou essas 47 mulheres para passarem 3 semanas no país debatendo o empoderamento da mulher pelo Jornalismo Esportivo. “Eu sabia que esse preconceito existia em muitos lugares, mas não imaginava que, nos países mais desenvolvidos, as mulheres viviam situações tão parecidas na profissão”, confidenciou a repórter libanesa, Rayanne Moussallem.
Se os desafios ainda são muitos, há uma grande diferença nos tempos atuais: as mulheres estão muito mais conscientes de que o “lugar delas” na sociedade é uma escolha particular delas mesmas e que ninguém tem o direito de interferir nisso.
Não são os homens nossos adversários, é importante dizer. É o preconceito. É o conceito de que esporte não é pra mulher ou de que nós só temos um lugar pra ocupar nesse mundo – a pia, a cozinha e suas adjacências. É essa ideia discriminatória que por tanto tempo nos isolou no Jornalismo Esportivo e contra a qual finalmente nós aprendemos a lutar. Nossa melhor resposta é resistir e incluir. Superar todo o assédio, a desconfiança, a sabotagem para garantirmos não só o nosso espaço, mas também o das outras que estão por vir.
Não é por acaso que 47 mulheres de 47 países diferentes enfrentam as mesmas dificuldades no Jornalismo Esportivo. E também não foi por acaso que elas se encontraram. Somente a força dessas (de todas) as mulheres unidas pode fazer esse grupo se multiplicar e o peso que elas carregam diminuir nas próximas décadas.