‘Quantas vezes vou ter que vir aqui pra dizer que fui chamada de macaca?’

Foto: Divulgaçãp FERJ

Esse tem sido o assunto da semana e, infelizmente, ainda é preciso que seja. E se muitas vezes pensamos que os casos de racismo no futebol ficam restritos a países europeus que ainda têm um alto nível de preconceito com jogadores negros, mas um julgamento do Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro pouco comentado nesses dias vem provar que a discriminação racial está bem viva por aqui também.

A situação aconteceu em uma partida da semifinal do Carioca feminino entre Vasco e Fluminense no estádio Nivaldo Pereira (na Baixada Fluminense) há duas semanas, no dia 26 de outubro, com uma auxiliar da arbitragem. Em determinado momento da partida, ela ouviu de uma torcedora “ô macaca, levanta isso daí! Não vai levantar isso não, sua macaca?”.

Paola Rodrigues José relatou na hora os insultos raciais para o árbitro da partida que, por sua vez descreveu na súmula do jogo o acontecido. Na hora, houve uma tentativa do delegado da partida e de funcionários do Vasco para identificar quem seria o(a) responsável pelos gritos, mas mesmo com tão pouca gente por perto, ninguém se manifestou. Ninguém apontou o agressor(a), ninguém condenou o ato. O silêncio foi a resposta.

Diante disso, Paola deu um depoimento muito emocionado sobre a situação.

“A torcida do Vasco estava atrás, e houve um lance, do outro lado do campo. O árbitro estava na jogada e eles queriam que eu o chamasse e tomasse uma decisão que não é minha. Então começaram “cega, maluca”, até que eu escutei a voz de uma mulher, que parecia ter uma idade avançada, pela voz, “ô macaca, levanta isso daí. Não vai levantar isso não, sua macaca?”. O jogo estava paralisado, eu chamei o árbitro, comuniquei a ele, ele disse ao quarto árbitro que chamou o delegado da partida para torcida se retirar. Primeiro a comissão do Vasco também tentou identificar a agressora, mas nenhum torcedor quis acusar. Foi todo mundo conivente”, afirmou a auxiliar em relato no tribunal.

“Então tiraram a torcida e colocaram atrás do gol até o final da partida. Não foi a primeira e não vai ser a última. Quantas vezes eu vou ter que vir aqui para falar que fui chamada de macaca? Não existe isso. Não existe”, relatou a árbitra sem conseguir conter o choro.

Até mesmo a defesa do Vasco mostrou certa indignação com a situação, pelo fato de ninguém ter ajudado a identificar quem seria o(a) autor(a) das injúrias raciais na hora do jogo. Conhecido por ter sido um dos primeiros clubes a acolher jogadores negros, o Vasco manifestou apoio à denúncia da auxiliar.

“Antes de mais nada eu gostaria, em nome do Vasco, hipotecar a total solidariedade pelos lamentáveis fatos narrados pela senhora Paola. O Vasco não coaduna com qualquer tipo de discriminação. Isso não é o perfil do Vasco da Gama, essa não é a história do Vasco da Gama. O Vasco foi o primeiro clube que admitiu negros e operários, a história do Vasco não pode ser manchada pela atitude absolutamente covarde de uma pessoa que não foi identificada. Preciso fazer uma defesa técnica. Diante da informação da assistente, o Vasco buscou identificar, mas essas pessoas infelizmente, Paola, se amparam na covardia. É um ato covarde”, afirmou Paulo Máximo, advogado que representou o clube cruz-maltino.

Foto: Divulgação Fluminense

O Vasco recebeu uma punição com multa de R$20 mil e a perda dos três pontos da partida – que, na prática, não tiveram nenhum efeito já que o clube foi eliminado pelo Fluminense naquela semifinal.

Mas diante de um fato como esse, que aconteceu num jogo do futebol feminino, que tem menos torcedores na arquibancada e, mesmo assim, nenhum se manifestou diante da injúria racial proferida, é preciso refletir sobre o nosso papel na construção de uma sociedade livre de preconceito. Assim como o atacante brasileiro Taison não se calou na Ucrânia ao ouvir os insultos da torcida em coro, precisamos reforçar o discurso citado por ele – originalmente da ativista negra americana Angela Davis: numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.

Essa é exatamente a ideia. É muito triste ver incidentes como esse, com ataques raciais à auxiliar de arbitragem, não só acontecerem como passarem incólumes por todas as pessoas que estavam ao redor naquele momento. Não é possível que, em 2019, a gente consiga assistir a torcedores chamarem negros de macaco sem qualquer revolta ou qualquer atitude para combater isso. Todo mundo que vê o racismo acontecendo ao seu redor e não faz nada a respeito é conivente. E é importante ressaltar que racismo é crime e existe pena para quem comete.

Como disse Paola, quantas vezes ela terá de voltar no tribunal para dizer que foi chamada de macaca? Quantos jogadores e jogadoras precisarão fazer isso até que a gente finalmente tome atitudes concretas para combater o racismo – no futebol e no dia a dia? Claro que é importante cobrar clubes e federações nessa luta, mas nós também temos que ser conscientes de que fazemos parte disso.

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