Nesta semana, repercutiu bastante por aqui uma declaração dada há alguns meses – muito antes de ter vindo ao Brasil comandar o Flamengo – do técnico Jorge Jesus a respeito dos treinadores brasileiros, que estariam “ultrapassados”, na opinião dele. Uma declaração, na minha opinião, infeliz, porque o português falou daquilo que não conhecia (ou conhecia muito pouco àquela altura) e de uma maneira generalizadora que é sempre complicada.
Duvido que ele mantenha sua opinião hoje, após alguns meses de trabalho por aqui. Existem, sim, técnicos ultrapassados no Brasil, como também existem em outros lugares do mundo. Como em toda profissão, há os bons e os ruins, os modernos e os ultrapassados. Mas essa declaração de Jorge Jesus despertou uma certa “ira” de muitos treinadores e comentaristas por aqui, o que acredito que diz muito sobre a maneira como a gente enxerga o futebol brasileiro: o melhor, o absoluto, o imbatível.
O tal “complexo de vira-lata”, expressão criada por Nelson Rodrigues justamente no contexto futebolístico da derrota de 1950 na Copa do Mundo, hoje sobrevive em quase todas as outras áreas, mas não no futebol. Na bola, nós nos achamos ainda os melhores do mundo sem discussão – ignorando que não somos, efetivamente, os melhores desde 2002 (última Copa do Mundo conquistada pela seleção brasileira) e desde 2007 (última vez que um brasileiro ganhou o prêmio de melhor do mundo, com Kaká). A falta desses títulos não quer dizer que nós não estejamos mais entre os melhores – mas apenas que há outros chegando para compartilhar o topo com o país que já produziu o melhor jogador (e a melhor jogadora) de todos os tempos, com Pelé e Marta.
E aí essa discussão chega ao auge quando se fala naquele que talvez até hoje seja o maior tabu do futebol brasileiro: a presença de treinadores estrangeiros tomando conta do “nosso futebol”. Na seleção brasileira (masculina), isso ainda é visto como uma “heresia”. Como poderiam permitir um nome estrangeiro para comandar o país pentacampeão mundial?
Acho que, por aqui, existe uma certa “arrogância” da nossa parte quando o tema é futebol. Por todos os feitos que o Brasil já conseguiu dentro de campo, por termos encantado o mundo com Pelé, Garrincha e companhia, por termos feito todos se apaixonarem por um time que sequer campeão foi (1982), e por termos mais títulos do que qualquer outro país, achamos que somos os melhores e ponto. Enquanto isso, todo mundo foi correndo atrás. Vieram novas filosofias de jogo, revoluções táticas, treinadores mergulhando nos estudos e criando novas tendências mundiais, e a gente aqui achando que “ser brasileiro basta” para manter o status de melhor do mundo.
Para se ter ideia, as licenças de treinadores na Europa começaram a existir em 1995. Em 2009, 15 anos depois, por uma exigência da Fifa, a CBF anunciou que criaria seus cursos – A “CBF Academy”, que hoje oferece a série de licenças para treinadores e gestores do futebol brasileiro, foi criada somente em 2016. Por muito tempo, os técnicos aqui foram formados com base na experiência que traziam do campo, como ex-jogadores, e no dia-a-dia de trabalho. Poucos buscavam cursos para aperfeiçoar seu conhecimento.
Na palestra da Brasil Expo chamada “A arte de ler o jogo”, os técnicos presentes pouco falaram sobre o tema central que dava título ao bate-papo. Dunga reforçou a “mania” que se tem no Brasil de “copiar modelos lá de fora” e disse que “só se fala em esquema tático quando um time perde”. Vagner Mancini chegou ao ponto de dizer que treinadores derrotados não deveriam ser obrigados a dar entrevista coletiva pós-jogo, porque “é muita pressão”. São discursos muito vazios para quem acha que o futebol brasileiro é tão soberano assim.
Com a presença de Jorge Sampaoli no Santos, e Jorge Jesus no Flamengo trazendo conceitos diferentes – de um futebol ofensivo que, curiosamente, são raros justamente no país que inventou o “jogo bonito” -, muitos técnicos daqui passaram a se incomodar. Nesses últimos tempos, vimos declarações como a de Levir Culpi, dizendo que “Sampaoli seria o próximo técnico da seleção por ser tatuado e andar de bicicleta. Além de tudo, ele é argentino. Esse é o fuebol brasileiro hoje”.
Vanderlei Luxemburgo entrou nessa temática ainda no ano passado, quando afirmou que lá fora não viu “Absolutamente NADA de diferente. Quero que alguém me mostre algo que está acontecendo no mundo que nós não sabemos. Tudo que acontece no futebol, nós sabemos. O técnico brasileiro é excelente”.
É como se a gente se bastasse, pura e simplesmente por termos DNA brasileiro. E quando tentamos aprofundar a discussão, a resposta de muitos técnicos é: “não tem nada de diferente”, ponto. Isso é basicamente acabar com a discussão antes mesmo de ela existir.
Hoje, olhando para o que começa a acontecer na seleção brasileira feminina com a presença de uma técnica estrangeira, e olhando para o que tem acontecido no Campeonato Brasileiro com a presença de Jesus e Sampaoli, eu apenas fico imaginando o tanto que estamos perdendo por não abrir portas para esse intercâmbio – ou por termos fechado essas portas por tanto tempo.
Pia Sundhage é bicampeã olímpica, tem um currículo invejável com conquistas no mundo todo, e ao chegar aqui, disse estar “realizando um sonho”. Rasgou elogios para o “futebol mais técnico e bonito do mundo” e tem todo o cuidado para dizer que não quer “mudar nada do estilo brasileiro”, apenas adicionar um pouco mais de “organização”. Jorge Jesus chegou a comparar a Libertadores com a Champions League e colocou o torneio sul-americano acima até em alguns quesitos. “A paixão nestes jogos é muito maior. Na Europa os estádios são cheios, mas a torcida não tem o calor do jogo como aqui no Brasil. Isso que é bonito”, disse. Sampaoli elogiou o Palmeiras no primeiro semestre e disse que seria muito difícil alcançá-los e também destacou o trabalho de Rogério Ceni no Cruzeiro logo na estreia do novo comandante.
Os estrangeiros já tiveram a humildade de reconhecer a qualidade e a história do futebol brasileiro. Falta nós mesmos admitirmos que temos falhas e que podemos, sim, buscar também do lado de fora ideias que contribuiriam para nossa evolução.