Era 2015, uma garota tímida, mas muito boa de bola, chegou ao campo do Centro Olímpico – o único que tinha categorias de base para meninas em São Paulo – para fazer um teste. Aos 13 anos, a menina demonstrava toda a habilidade que herdou da rua, dos jogos com os meninos na periferia de São Paulo, quando ainda olhavam torto para ela. Naquela época, lugar de menina era outro.
Vitória Ferreira virou logo um dos destaques da equipe sub-13 do Centro Olímpico. Chamada de “jogadora completa” pelos técnicos que a observavam, ela tinha todo o domínio da técnica, do passe, da ocupação de espaço no gramado. Uma daquelas ditas “fora de série” como diz um dos maiores clichês já inventados no futebol. E se ainda achavam que o lugar dela – ou de qualquer outra menina – não era ali, no campo, elas iriam provar o contrário dentro dele.
Foi numa Copa Moleque Travesso em 2016, tradicional campeonato de base para meninos, que uma equipe feminina chamou a atenção. O Centro Olímpico buscava um torneio para sua equipe poder disputar e não havia nenhum para meninas, então restou a elas competir com as equipes masculinas. Logo de início, elas causaram choque principalmente nos pais dos atletas, que não entendiam a presença de meninas naquele território. Com as vitórias, foram despertando a ira dos adultos, que brigavam com os filhos por eles perderem para um “time de meninas”. Pois perderam todos, menos o futebol feminino. Aquelas meninas conquistaram o troféu e, muito mais do que isso, abriram caminhos para que muitas outras pudessem seguir o sonho de jogar bola.
Vitória estava entre elas e foi uma das líderes em campo daquela equipe campeã. Aliás, esse nem era mais seu “nome” dentro de campo. Afinal, de onde Vitória virou Yayá?
“A gente foi fazer arbitragem de amistosos do sub-13 do Thiago (Viana, treinador da categoria). Era um dos primeiros jogos dela. Logo que terminou, eu falei para os caras que ela parecia o Yaya Touré jogando, naquele estilo ‘box to box’. Aí a gente ficou zoando que era Yaya. Eu falei pra ela ver uns vídeos dele para saber do que eu tava falando. Ela viu e aí o apelido ficou porque a gente tinha outras duas Vitórias no time”, contou Lucas Piccinato, hoje técnico da equipe feminina principal do São Paulo, que na época trabalhava no Centro Olímpico.
O tal “box to box” foi a característica mais repetida dos três treinadores com os quais Yayá teve contato no Centro Olímpico. Na linguagem técnica do futebol, isso basicamente significa uma jogadora que consegue atuar bem de uma área à outra, tanto cumprindo funções na parte defensiva, quanto sendo protagonista também na parte ofensiva. Foi essa a qualidade que levou Yayá a ser convocada pela primeira vez para a seleção principal, mesmo aos 17 anos de idade.
“Ela tinha muitas características do futebol brasileiro quando ela chegou, do drible, do bom passe, da ousadia no futebol. Jogava muito pensando em ir pra cima, pra ofensividade e, naturalmente, com 13 anos, não tinha desenvolvido ainda os aspectos coletivos do jogo. Aos poucos dentro do clube fomos trabalhando isso com ela. Hoje, ela faz um ‘box to box’ no time adulto que ela desenvolveu muito bem, ou seja, ela ataca bem e defende bem dentro da área”, explicou Thiago Viana, primeiro treinador dela no Centro Olímpico.
Preconceito
Como toda menina que já jogou bola, Yayá passou a infância ouvindo que “futebol era coisa de menino”. Até mesmo dentro de casa essa questão ainda tinha um pouco de resistência. Mas a menina começou a jogar em um projeto social da periferia onde morava e, de lá, a professora Vina a levou para o teste no Centro Olímpico. Aos 13 anos, Yayá chamou muito a atenção dos técnicos por lá.
“A Yaya é aquela atleta que sabe fazer de tudo. Não tem fraquezas tecnicamente, isso é fantástico. Uma jogadora assim tem um potencial pra conseguir atuar em diversas posições, tem variações de jogada, pode contar no jogo aéreo, criativo, de transição”, disse Jonas Urias, hoje técnico da seleção sub-20 que estava na base do Centro Olímpico à época.
No campeonato que disputou com os meninos, Yayá foi uma das líderes dentro e fora de campo. Ali, ela já demonstrou uma maturidade enorme para uma atleta em formação. Diante de todos os preconceitos e os desafios que enfrentaram apenas por estarem jogando aquele torneio, as jogadoras do Centro Olímpico criaram uma motivação ainda maior para conquistar o troféu.
“A gente enxergava naquele campeonato uma luta pela causa do futebol feminino. A gente sabia que, muito mais do que a preparação delas para o futebol, do que um título, aquele campeonato poderia significar uma quebra da cultura machista no nosso país. Isso foi muito importante, as meninas agarraram esse desafio muito novinhas. Ela conseguiu desempenhar muito bem o papel dentro e fora de campo também, porque a gente sabia que iria sofrer com todos esses xingamentos. E a Yayá soube lidar muito bem com isso e foi uma das líderes pra gente conquistar esse feito”, relatou Thiago.
Seleção
Apesar de ainda muito nova, Yayá assumiu um protagonismo como volante do São Paulo e foi campeã brasileira na série A2 com a equipe no último domingo. Titular absoluta, ela fez um dos golaços na primeira partida da final contra o Cruzeiro e chamou a atenção da técnica Pia Sundhage, que a incluiu na sua primeira lista de convocadas. Quem joga com ela, sabe que esse reconhecimento não veio por acaso.
“Vejo que a maior qualidade da Yayá é o quão bem ela consegue ler o jogo pra abrir espaço, não só para o jogo dela se desenvolver, mas para o jogo da equipe mesmo. Ela é muito inteligente, mesmo sendo muito nova, consegue ver o jogo de uma forma diferente, privilegiada, isso faz com que ela esteja aí se destacando. Acho que é uma menina que tem tudo para ser o carro-chefe para puxar uma nova fase na seleção brasileira, de uma possível renovação”, avaliou Ary, camisa 10 e capitã do São Paulo, que divide o meio-campo com Yayá no clube.
O primeiro treinador “oficial” de Yayá aposta no potencial dela para o futuro. Mas ele também ressalta que o mais importante agora é que ela mantenha os pés no chão e construa seu caminho todos os dias para o sucesso. “É nítido que ela tem um potencial muito grande pra chegar muito longe. Mas a gente costuma dizer que tudo isso é imaginário, a gente precisa criar esse futuro no dia a dia. Capacidade, ela tem e muita”, disse Thiago.
Para mirar no topo, nada melhor do que conviver com aquelas que já estão lá. Na seleção brasileira, Yayá está tendo a oportunidade de dividir o campo com Formiga, uma das maiores jogadoras do país, que tem 7 Copas do Mundo no currículo. Sem falar nas outras craques que estiveram no Mundial.
“Criar referências. Isso é fundamental. Uma coisa é você ouvir que é assim, assado. Outra coisa é você ver, acompanhar de perto, sentir, ouvir de alguém que está vivendo o processo, isso é o mais importante”, aconselha Jonas.