Foto: Reprodução Twitter / Chama Olímpica
Pela primeira vez na história, a seleção feminina tem futebol terá uma preparadora de goleiras. Sim, uma mulher que fez história debaixo das traves e que agora recebeu a oportunidade de passar toda sua experiência e preparo para outras atletas que, assim como ela, são consideradas heroínas e vilãs dentro da pequena área.
Ao lado da treinadora Simone Jatobá e da auxiliar técnica Lindsay Camila, Maravilha será a preparadora de goleiras da seleção de base sub-17 do Brasil.
Marlisa Wahlbrink é mais conhecida pelo seu apelido que homenageia a cidade de Santa Catarina onde morou por muitos anos quando era mais jovem: Maravilha. Nascida em Constantina, no Rio Grande do Sul, foi guarda-metas da seleção brasileira por anos, e participou dos Jogos Olímpicos de Sydney (2000) e Atenas (2004), quando foi medalhista de prata. Conquistou também o 3º lugar no Mundial de 1999 e foi bi-campeã sul-americana em 1998 e 2003.
Da roça para a escola
De origem muito humilde, Maravilha cresceu ao lado de mais oito irmãos no interior de Santa Catarina. Trabalhava na roça ajudando a família, mas queria mesmo era estudar. “Sempre gostei mais de estudar, mas lá no interior os pais achavam mais interessante que os filhos trabalhassem porque a mão de obra era mais necessária na roça e achavam que o trabalho me remunerava mais do que o estudo”, afirmou em entrevista ao podcast das dibradoras pela Central3.
Maravilha percebia que o esforço de seus pais não seria o suficiente para dar aos filhos melhores oportunidades ao longo dos anos. “Sabíamos que cada filho teria que batalhar pelo seu espaço na vida”, disse.
A bola, objeto simples e barato, era o presente que os irmãos ganhavam da família em datas comemorativas como aniversários e Natais. E foi assim, ao lado dos cinco irmãos e das três irmãs que ela passou a amar a bola, mas sua paixão foi interrompida. “Quando tinha uns 13 anos, meu pai não queria mais que eu e as outras meninas da casa jogassem futebol. Aquilo me revoltou muito porque era a coisa que eu mais gostava no mundo”, contou.
E essa proibição foi a porta de entrada para que Maravilha passasse a questionar algumas coisas na sociedade, como por exemplo, o trabalho que realizava. “Na roça trabalhávamos de sol a sol, o ano inteiro, pesado e eu questionava: ‘por que as outras pessoas têm carro, dinheiro e a gente não?’ Comecei a me perguntar: se era o trabalho que dava dinheiro, porque a gente não tinha esse retorno?”
Decidida a estudar, Maravilha saiu de casa aos 21 anos em busca de conhecimento. Foi estudar em um colégio que era organizado por Movimentos Populares do Rio Grande do Sul, mesmo sem o apoio do pai. Foi na escola que passou a jogar futebol com os meninos e ouviu das garotas que deveria buscar um time feminino para jogar porque levava jeito para a coisa.
Maravilha passava 45 dias integralmente na escola e depois voltava para a casa, ficando outros 45 dias por lá, colocando em prática o que aprendeu com os trabalhos e estudando. E foi em um desses retornos que ouviu o pai dizer “se você sair de casa pra fazer seus trabalhos, não precisa voltar”. E assim aconteceu, ela saiu de casa sem um tostão no bolso e sem saber onde passaria a noite.
Da escola para o futebol
Um colega da escola onde estudava a acolheu, e Maravilha contou a ele que tinha o sonho de jogar futebol. O amigo Flavio foi o responsável por ajudar a ex-goleira a realizar seu objetivo. “Soube que o Cruzeiro de Porto Alegre estava fazendo testes pra montar uma equipe para disputar a Taça Brasil. Contei isso para o Flávio e ele me disse ‘que tal eu ser seu empresário?’. E foi o Flavio que entrou em contato com a Federação Gaúcha, fez todo o processo, comprou a passagem e foi comigo até Porto Alegre para me sentir mais segura.”, revelou. Maravilha fez o teste com ajuda de comerciantes da cidade que doaram chuteira e uniformes para ela jogar. “Eu não tinha dinheiro, fui nas lojas pedindo ajuda e as pessoas me deram as coisas, tudo do mais simples, mas que pra mim era o melhor que tinha.”
Ela passou no teste e ficou em Porto Alegre trabalhando como doméstica para conseguir se sustentar, já que o clube não oferecia salário, apenas o dinheiro do transporte coletivo. Depois, as coisas melhoraram com a chegada de alojamento e alimentação.
Ela começou a carreira inicialmente como atacante, mas pediu para fazer um teste no gol e não saiu mais de lá. “Quando passei no teste para jogar no gol, em um mês tirei a posição da goleira que era titular do Cruzeiro há 10 anos”, revelou.
Jogou a Taça Brasil e chamou a atenção de Romeu Castro – atual supervisor de futebol feminino do departamento de competições da CBF – que na época fazia parte de uma das mais famosas equipes de futebol feminino dos anos 90, o SAAD-São Paulo. Maravilha defendeu o time paulista e finalmente teve seu primeiro registro profissional como jogadora de futebol.
Goleira de seleção
Sua carreira defendendo o Brasil começou em 1995 e só parou em 2008, porque ela queria ter tempo para estudar e ter filhos – ela é mãe de Yuri de nove anos.
Defendeu a seleção brasileira em dois ciclos olímpicos (2000 e 2004) e destaca a equipe comandada por René Simões como a mais especial. “O trabalho para jogar a Olimpíada de Atenas começou cinco meses antes, isso era inédito. Estávamos desconfiadas porque nunca tivemos tanto apoio como na época do René. Aos poucos ele foi conquistando a gente com a qualidade do trabalho. Fomos percebendo dia-a-dia o nosso desenvolvimento, com as meninas se sentindo melhor fisicamente. Nos unimos em torno de um objetivo que foi o de conquistar a medalha de ouro”, relembrou.A seleção não levou o ouro e não alcançou o reconhecimento que tanto imaginava. “Tínhamos expectativas por parte da CBF depois da prata em Atenas, mas não nos deram a mínima”, revelou.
Com dificuldades de encontrar times para jogar, Maravilha resolveu aceitar uma tentadora proposta dos Estados Unidos e foi ser treinadora de goleiras e auxiliar do time de futebol feminino de uma Universidade em Kansas.
Maravilha se formou em Educação Física e chegou a treinar goleiros e goleiras na prefeitura da cidade de Maravilha, em Santa Catarina. O gene de boleira rendeu frutos na família com Maike e Maiquiele Weber, as irmãs-arqueiras e sobrinhas de Maravilha que atuaram em clubes como o Iranduba e Chapecoense-SC.
Agora, Maravilha faz história mais uma vez. A garota que saiu da roça em busca de conhecimento vai poder transferi-lo para meninas de até 17 anos que, assim como ela, têm a bola como uma grande paixão.