‘Pra dar o c*, você vira de quatro’: o que as lutadoras ouvem nos tatames

Foto: Divulgação Focados no Tatame

Uma garota de 15 anos chega à academia na decáda de 1990 curiosa para fazer sua primeira aula de jiu-jitsu. Ela relutou muito até chegar naquele momento, porque nenhuma menina fazia parte dos treinos. Todos os alunos eram homens, além do técnico. A ideia de que a luta “não era para ela” sempre ficou muito clara, não à toa a menina passou anos indo fazer aulas de ballet enquanto o irmão ia para o jiu-jitsu e ela morria de inveja. Logo na primeira luta, o primeiro nocaute – não por uma técnica, mas por uma atitude.

“Ah, gostosa”, disse o lutador quando puxou Luciana Neder na guarda. Ela reagiu, deu um chute nele e gritou na hora. Ao garoto, restou chamá-la de louca. A ela sobrou resistir a esse que seria apenas o primeiro assédio que sofreria na vida de lutadora de jiu-jitsu. Foram inúmeros outros casos vividos, ouvidos ou presenciados por ela ao longo de décadas no tatame, como faixa-preta na modalidade e agora como diretora da Federação Sul-Americana de Jiu-Jitsu.

O Uol Esporte lançou nesta semana a campanha #QueroLutarEmPaz juntamente com a série “Vozes no Tatame”. São relatos em primeira pessoa de mulheres, entre atletas e ex-atletas, que sofreram violência de gênero e abuso sexual enquanto praticavam artes marciais. Serão três capítulos publicados às quartas-feiras entre 14 e 28 de agosto.

O blog das dibradoras apoia a iniciativa e traz aqui algumas das piores frases já ouvidas por lutadoras do jiu-jitsu no tatame.

‘De quatro’

Era a luta de uma atleta em um campeonato de jiu-jitsu. O técnico dela estava ao lado do tatame, orientando a menina durante o confronto. Tinha tudo para ser uma situação comum, até que o Sensei diz a ela: “Vai, vira de quatro. Para dar o c*, você sabe virar de quatro”.

A situação foi presenciada por Luciana Neder, que logo após a luta foi questionar o treinador pela abordagem com a atleta. Ele desconversou, minimizou, disse que era “modo de falar”. Um modo abusivo e, infelizmente, bastante comum no tatame.

Foto: Divulgação Focados No Tatame

“Dar um rola” ou “rolar”, por exemplo, são gírias comuns que significam a luta propriamente dita. Mas quando há mulheres treinando, essa palavra ganha outro contexto. Como elas são sempre minoria no tatame (a não ser quando são treinos exclusivamente femininos), os assédios que os homens julgam ter apenas um tom de brincadeira são frequentes e certeiros.

“Vem rolar na minha rola”, é um dos mais populares.

“Vira de quatro pra mim, não, que eu gamo”, é outra frase comum repetida para as lutadoras.

Assédio e violência

São casos assim que colocam as mulheres numa situação vulnerável no contexto das lutas. Elas são sempre os corpos a serem desejados, cobiçados, assediados e até abusados. Nunca a referência da técnica, da habilidade, do desempenho esportivo, por assim dizer. No post de uma página de Jiu-Jitsu no Facebook com um vídeo de duas mulheres lutando, deu para ver o nível do assédio nos comentários.

“Treino de jiu-jitsu para fortalecer bem a mão direita”, escreveu um. “Boa técnica, estou vendo até dentro do banheiro por sinal”, postou outro. “Só não pratico jiu-jitsu porque não encontrei professoras assim ainda”; “O cama sutra todinho em performance”; esse era o nível dos milhares de comentários deixados por homens na postagem.

São atitudes como essa que afastam as mulheres das lutas desde muito cedo. Para se ter ideia, dos 59.423 atletas sul-americanos federados no jiu-jitsu, somente 8.138 são mulheres (13%). E uma pesquisa realizada pela lutadora Mayara Munhos na ESPN mostrou que 61% das atletas da modalidade já sofreram algum tipo de assédio.

“Conversando com as mulheres, percebi que a maioria não chega nem a trocar a primeira faixa (no jiu-jitsu) e já saem da academia. Isso porque sofreram violência, assédio ou algum tipo de preconceito. A gente ouve muita coisa. Tanto de técnico, quanto dos caras que treinam junto. O cara agarra, tenta beijar a força. Pouco tempo atrás, uma menina registrou uma ocorrência de um professor do jiu-jitsu que a chamou para aulas particulares e tentou agarrá-la a força”, contou Luciana.

Foto: Arquivo Pessoal

Há também alguns tipos de violência psicológica que são comuns no tatame. A frase “você parece uma mulherzinha lutando” é muito comum para depreciar a técnica de algum lutador. E, para as mulheres, também é recorrente ouvir coisas como “quero rolar com ela agora para descansar”; “pega leve com ela que ela é mulher”; não foram poucas as vezes que Luciana viu lutadores falarem isso. A resposta dela era direta: “Sou mulher, mas sei bater igual a você”.

A importância de falar

Diante do assédio que sofreu aos 15 anos, a única coisa que fez com que Luciana não deixasse o jiu-jitsu de vez foi ter encontrado um grupo só de mulheres que treinava em outra academia. Com elas, não tinha medo de assédio, nem se sentia constrangida. Foi ali que virou faixa-preta e, a partir dali, construiu sua carreira vitoriosa no esporte. Hoje, tem um papel importante na federação justamente para combater os casos de assédio e abuso e também para acolher as denúncias de mulheres que sofreram esse tipo de violência no tatame.

Para isso, ela criou uma ouvidoria na entidade por meio de um número de whatsapp. As denúncias serão acolhidas por mulheres, que oferecerão apoio, orientação para o registro de ocorrência e acompanharão o caso com a lutadora.

“Muitas vezes, a mulher não fala porque se sente coagida, porque só tem homem na academia, ou ela começa a achar que está ficando maluca, que não aconteceu. Mas acontece sim e acontece muito. A gente precisa falar mais sobre isso. As mulheres precisam denunciar, porque só assim a gente vai conseguir coibir essas coisas”, afirmou.

Uma outra estratégia importante para combater os casos de assédio e abuso seria capacitar e conscientizar os treinadores sobre o tema. Luciana reforça que, por ser um ambiente muito masculino, o tatame carrega ainda uma cultura muito machista que aprova esses tipos de violência contra a mulher.

“A capacitação de treinadores é muito importante. Falar sobre o jiu-jitsu feminino, treinar as academias e treinadores pra acolher as mulheres quando elas chegam. A falta de mulheres nos cargos também colabora com isso. São poucas academias que têm mulheres pra dar aula, ou campeonatos com árbitras, gestoras na federação, são pouquíssimas, a gente pode contar no dedo. Isso afeta o reconhecimento e valorização da mulher no esporte”, disse.

As lutadoras que sofreram algum assédio ou abuso podem denunciar pela ouvidoria da SJJSAF (Federação Sul-Americana de Jiu-Jitsu). O serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana por ligação ou WhatsApp: (21) 97102-5414.

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