Ao entrar no auditório da CBF nesta terça-feira, já era possível notar uma diferença. Ao contrário do cenário comum nas apresentações de técnicos, com uma mesa e vários lugares para dirigentes ocuparem, desta vez o que se via era uma cadeira solitária, sem nada na frente, em um palco que esperava para receber uma “estrela”. Foi com esse status que Pia Sundhage chegou para ser anunciada oficialmente como a nova técnica da seleção feminina.
Tudo ali representava uma grande quebra de paradigmas da CBF. Foi a primeira vez que a entidade se rendeu a uma estrangeira para comandar uma de suas seleções. Foi a primeira vez também que ela preparou um vídeo de apresentação da treinadora, com toda a trajetória vitoriosa de Pia pelo futebol. A primeira vez que já houve uma recepção calorosa das jogadoras, preparada pela própria confederação, com um outro vídeo reunindo depoimentos de algumas das principais atletas da seleção dando as boas-vindas à sueca. E talvez a primeira vez que um técnico demitido do cargo tenha acompanhado a apresentação de um substituto (uma substituta, no caso) “de camarote”, na primeira fila – Vadão esteve presente e fez uma reunião com Pia para passar os relatórios e informações da seleção feminina.
Os nomes na plateia davam mostras do quão grandioso era aquele evento para a CBF. Nunca uma apresentação de técnico de seleção feminina recebeu tanta atenção da confederação a ponto de reunir no auditório o presidente da entidade, Rogério Caboclo, os representantes da seleção masculina, Tite, Juninho Paulista e Branco, o próprio secretário-geral da confederação, Walter Feldman, e até mesmo o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. O discurso de Caboclo logo no início do evento chegou a impressionar. Não é comum ver tamanho envolvimento de um presidente da CBF com o futebol feminino. Aliás, o anúncio do nome da nova treinadora feito pessoalmente pelo mandatário da instituição é algo inédito na modalidade.
“Esse é um momento histórico, de grande alegria. De trazer a melhor treinadora do mundo para o melhor futebol do mundo. A Pia dispensa apresentações, simplesmente participou das três últimas finais olímpicas. Pia conjuga a qualidade técnica com as jogadores que temos”, exaltou Caboclo.
O mandatário falou ainda sobre “a nova era” que se inicia no futebol feminino com a chegada de Pia. Ressaltou que a contratação dela é parte de uma grande mudança para “as próximas décadas”. E ainda deu carta branca para ela no cargo – até reconhecendo que, no passado, talvez a modalidade não tenha tido a atenção que merecia.
“Confesso que em algum momento no mês de abril, quando tivemos o seminário da CBF, eu tive um contato pessoal com a Pia, e ela me surpreendeu além do currículo, com sua capacidade, sua alegria de falar sobre futebol. Naquele momento, eu que não peço pra tirar foto com ninguém, pedi pra tirar uma com ela. Talvez algo me dizia que ela poderia ser o futuro do futebol feminino do Brasil. Ela será responsável por renovar as seleções, por trazer opiniões, por cuidar das categorias de base e falar sobre as competições no Brasil”, afirmou.
“A partir de hoje estaremos definindo o que será o futebol feminino nas próximas décadas no Brasil. Se alguma vez houve a percepção de que o futebol feminino não era tão prestigiado, hoje não vai mais ter. Eu brinquei com a Pia que eu não sou o gênio da lâmpada, ela tem pedidos a fazer, mas não são limitados a três. Então a gente pode realizar dentro do bom senso e da consciência que ela tem, tudo aquilo que de melhor a CBF pode propor”.
É preciso admitir que esse é um momento único para o futebol feminino no Brasil. Nunca se teve tanta atenção da mídia e, talvez por isso, nunca se teve tanta atenção da CBF para falar sobre esse tema. A contratação de Pia veio como uma resposta a quem cobrava uma pessoa mais capacitada e qualificada para comandar a seleção principal e pode também servir como um escudo para a confederação que nunca olhou como deveria para a modalidade, e agora tenta usar a treinadora como a solução para todos os problemas.
Um vídeo apresenta Pia aos presentes, destacando suas principais conquistas pic.twitter.com/kK8ZLLb64H
— dibradoras (@dibradoras) July 30, 2019
Não há como colocar o fardo de décadas de não investimento e de descaso com o futebol das mulheres na CBF nas costas de Pia. Ela é, sim, um reforço indiscutível para uma modalidade que há tanto tempo luta por reconhecimento. Mas precisamos deixar de lado nossa mania de eleger heróis (heroína no caso) para depositar neles todas as nossas expectativas de mudança. Se a CBF está disposta a finalmente olhar para o futebol feminino, ela terá de demonstrar isso para além da contratação de Pia. Se é reformulação que se deseja, é necessário começar pelo departamento de futebol feminino da própria confederação, que não tem as pessoas mais qualificadas para liderar esse processo. Aliás, são as mesmas pessoas (a maioria delas) há quatro anos, sendo que nenhuma delas teve vivência no futebol feminino antes (a não ser a ex-jogadora Bia Vaz, que fazia parte da comissão técnica de Vadão).
Se a ideia é “definir o que será do futebol feminino nas próximas décadas”, já é preciso preparar o futuro, trazer para a CBF e para a própria comissão de Pia mulheres que têm capacidade e buscam oportunidades para se desenvolverem na gestão e no comando técnico e que possam absorver todo o conhecimento da sueca e aprender com ela. Foi assim que os Estados Unidos formaram uma técnica bicampeã mundial – Jill Ellis era assistente de Pia e assumiu o comando da seleção quando ela saiu. Quais serão os planos para capacitar mais treinadoras, mais gestoras, para projetar o futuro do futebol para as mulheres tanto dentro quanto fora do campo?
A contratação de Pia merece ser comemorada e, sem dúvidas, é um grande avanço para o futebol feminino. Mas para fazer valer o bonito discurso de Caboclo na recepção dela, é preciso ir além disso.