Os Estados Unidos já faziam 3 a 0 em cima do Chile no segundo jogo da Copa do Mundo feminina e ainda com o time reserva, quando ouvi o comentário do jornalista ao meu lado que falava com outro colega. “Esse time americano é diferente. Elas jogam como um time masculino”.
As americanas estavam engolindo as adversárias em campo. Então basicamente o que ele quis dizer é que “jogar como um time masculino” é jogar bem. Necessariamente. Mas eu poderia nomear aqui pelo menos 10 times masculinos da Série A do Brasileiro que jogam um futebol medonho, muito abaixo desse apresentado pelos Estados Unidos na Copa feminina. Então quando é que “jogar como um homem” virou sinônimo de jogar bem? E por que as americanas não podem simplesmente estar jogando como mulheres, craques, que são?
Até porque, se comparar com o futebol que os próprios colegas delas de seleção masculina dos Estados Unidos jogam, elas estão muito acima. Jogam bem melhor do que eles.
De uma coisa, não discordo do colega. O futebol apresentado pelos Estados Unidos nesse e em qualquer outro Mundial é bem diferente. Não é porque elas parecem homens jogando, mas porque elas são realmente muito boas. Muito organizadas e inteligente taticamente, apresentam inúmeras variações ofensivas e uma segurança defensiva de dar inveja. Marcam forte, em cima, sufocando as adversárias. Ocupam o campo com maestria. Isso, meus amigos, não significa jogar como um time masculino, mas significa jogar BEM. E muito bem.
Perguntamos a Carli Lloyd, a camisa 10 dos EUA, Megan Rapinoe, outra craque do time, e a zagueira Becky Sauerbrunn o que elas achavam dessa comparação.
“Acho que nós somos um time ótimo, nós tocamos a bola, jogamos bem, temos um jogo gostoso de ser visto, estamos fazendo gols, é difícil comparar com homens, é diferente. Mas acho que nós realmente estamos elevando o nível do futebol feminino, fazendo jogos espetaculares” – Lloyd.
“Eu não sei…será que nós estamos parecendo mais rápidas do que todos os outros times? Imagino que isso era para ser um elogio, né. Nós estamos jogando em velocidade e acho que também somos um time muito físico na marcação, e o estilo que nós queremos jogar é de velocidade no campo ofensivo, transição, contra-ataque, acho que não é todo time feminino que tem essa característica, nós provavelmente somos um dos poucos que consegue fazer isso” – Rapinoe.
“Acho que nós somos um time feminino e nós jogamos um ótimo futebol. Não estamos tentando comparar com os homens de nenhuma maneira. Mas acho que nós queremos ser as melhores, queremos ser dominantes. Acho que depois desses dois jogos as pessoas puderam ver que nós podemos ser dominantes, que podemos manter a posse de bola e marcar gols bonitos” – Sauerbrunn.
A explicação
Há motivos que explicam facilmente por que as americanas apresentam tamanho sucesso no futebol entre as mulheres. Neste domingo, antes do jogo delas, passei o dia com Sissi, a veterana ex-jogadora brasileira que desde 2002 mora nos Estados Unidos e há pelo menos 10 anos trabalha com o futebol de base entre as meninas por lá. Ela é treinadora de um dos clubes da Califórnia que tem categorias femininas a partir do sub-10. Só no time dela, há mais de 2 mil meninas registradas. São mais dezenas iguais a esse na Califórnia. Mais centenas, milhares nos outros estados e no resto do país.
Sissi contou que as meninas disputam competições o ano todo em suas regiões. Aos 10, elas ainda jogam em um campo menor, com menos jogadoras. Aos 12, começam a migrar para o campo oficial, no 11 contra 11. Sabe com quantos anos jogadoras como Marta, Cristiane, Bárbara, Tamires e outras que hoje são titulares da seleção brasileira pisaram em um campo de futebol pela primeira vez? Com 14, 15 anos. Nenhuma delas passou por categoria de base propriamente dita. Elas estrearam direto no profissional.
A primeira competição de uma categoria de base para o futebol feminino no Brasil aconteceu há apenas dois anos. Foi o Paulista Sub-17, em nível estadual. A primeira competição nacional de base vai acontecer somente neste ano, o Brasileiro sub-18 recém-criado pela CBF.
Ainda são pouquíssimos os clubes que oferecem categorias de base para meninas abaixo dos 14 anos. Em São Paulo, o Centro Olímpico, no Rio de Janeiro, o Fluminense, em Porto Alegre, o Internacional – que se conheça, são esses. Não à toa uma garota como a pequena Natália, de 10 anos de idade, precisou passar em uma peneira de meninos do Avaí para conseguir jogar bola em um clube nessa idade.
Nos Estados Unidos, as meninas disputam torneios e jogam futebol em um nível competitivo desde os 10 anos de idade. São milhares de clubes disponíveis para elas fazerem peneiras já nesta idade. Desde muito cedo, começam a ter rotina de atleta, com treinos pelo menos três vezes por semana, jogos todos os finais de semana, lidam com as frustrações das derrotas e as alegrias das vitórias construídas com o time dentro de campo. Uma vivência que faz com que elas cheguem ao profissional com um preparo absoluto. Elas chegam à seleção principal já formadas como atletas, prontas para lidar com pressão, cobranças, e com toda a estrutura necessária para apenas JOGAR FUTEBOL. Elas não precisam se preocupar com nada além disso.
Hoje, os Estados Unidos não têm o campeonato mais forte do mundo no futebol feminino, nem é para lá que as jogadoras mais novas sonham em ir no futuro – a ambição delas atualmente está muito mais voltada para disputar a Champions League ou vestir a camisa do hexacampeão europeu Lyon, do que em ir para terras americanas. Mas para as meninas, a melhor base do mundo ainda é os Estados Unidos. Ninguém trabalha tão bem a iniciação das garotas no esporte – e especialmente no futebol – quanto eles.
O resultado está aí: o time tricampeão do mundo, tetracampeão olímpico, que “parece um time masculino jogando”. Talvez pareça mesmo, já que essa é a única seleção no mundo que teve uma estrutura na base tão completa quanto qualquer time de elite do futebol dos homens. Podemos, sem medo, dizer que os Estados Unidos são “o país do futebol” para meninas.
Seguimos admirando e torcendo para que essa realidade das americanas não seja mais a exceção no futebol feminino e vire de vez a regra em qualquer lugar do mundo.