Assim como Edson Arantes do Nascimento, Mariléia dos Santos também tem dificuldade em responder quando a chamam pelo nome de batismo. Mas nem é essa a principal característica que ela tem em comum com o principal jogador do futebol brasileiro. Assim como Pelé, Mariléia é goleadora e coleciona mais de 1.000 gols na carreira – um total de 1.574 para ser mais precisa.
Vamos chamá-la pelo nome de verdade, que tem o peso de outra estrela: Michael Jackson. Foi assim que as companheiras do Radar, seu primeiro clube de futebol da carreira – e um dos primeiros de futebol feminino a serem criados no país na década de 1980 – a apelidaram e o nome de popstar acabou eternizado na voz do narrador da Bandeirantes, Luciano do Valle.
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“Michael Jackson surgiu quando cheguei no Radar, eu tinha o cabelo parecido com o dele, na época o Michael ainda era mais novo, estava começando a fazer aquele sucesso todo na década de 1980. O Luciano foi assistir ao nosso treino, aí as meninas falavam que meu cabelo parecia o dele, e aí ele falou: e se colocar o apelido de Michael Jackson? Aí ele falou que iria criar um desafio, sortear prêmios pra quem adivinhasse meu nome e tal. Aí pegou. Ninguém me chama pelo nome”, contou a ex-jogadora às dibradoras.
“Foi uma marca. Quando o Michael morreu, parecia que eu tinha perdido uma parte de mim, parecia que eu tinha perdido um pedaço. Agora ficou só eu mundialmente”, brincou ela, com toda a sua irreverência.
11 irmãos e um reserva
Talvez muita gente não conheça a história de Michael Jackson no futebol. Ela jogou bola nos tempos em que isso era proibido por lei para mulheres no Brasil. Só que esse decreto não chegou até a sua casa em Valença, a 150 Km do Rio de Janeiro, onde cresceu ao lado, literalmente, de um time inteiro de futebol. Era ela e mais 10 irmãos, seis meninas e cinco meninos. Todos jogavam futebol. O campo de várzea do bairro era a diversão da família toda – ela era caçula, mas logo aprendeu a fazer gol nos mais velhos e virou a jogadora mais disputada do pedaço, a primeira a ser escolhida por todos os times.
“Desde que nasci, o futebol já estava no meu sangue. Eu sou de uma família de 11 irmãos, um time inteiro e ainda tinha meu pai de reserva”, conta. “A única que nunca jogou era minha mãe. Eu sou a caçula, mas nossa diversão sempre foi futebol, tanto para os meninos quanto para as meninas. Do lado da casa dos meus pais sempre teve um campo onde jogavam todos juntos, a gente nunca teve esse preconceito. Até que um dia se formou um time feminino onde eu morava. Até então eu nem sabia que futebol era proibido. Depois que eu fui saber”.
Com a liberdade de quem cresceu entre dribles e gols, Michael Jackson chegou ao Radar onde integraria um dos maiores times de futebol da história. O clube começou com o futebol de praia para mulheres, mas logo elas migraram para o campo e ali davam show por onde passavam. Foram seis títulos nacionais (Taça Brasil da época), mais seis cariocas na década de 1980, fora os títulos conquistados com a seleção brasileira. Naquela época, se não tinha uma convocação oficial e uma equipe formada pela confederação para representar o Brasil nos torneios, o Radar fazia isso muito bem, obrigada. E foi assim que Michael Jackson foi parar na primeira seleção oficial do futebol feminino por aqui.
“Foi um dos melhores times até hoje, enquanto ele existiu era imbatível. Foram 135 partidas, sempre representando o melhor futebol. Tanto que quando Luciano do Valle ouviu falar do Radar, ficou encantado. Ele gostou e começou a acompanhar mais a gente”, relatou a ex-atleta.
“Na minha época não tinha essa coisa de querer jogar na seleção, porque não tinha seleção. Todos os eventos internacionais que tinham, o Radar que representava. A seleção era o Radar. Aí surgiu o torneio (Mundial) experimental em 1988, e veio a primeira seleção. A maioria das atletas era do Radar. Fomos pra China disputar esse torneio e ficamos com a medalha de bronze. Foi a primeira seleção que existiu”, conta, orgulhosa.
‘Jogar é para quem sabe’
Foi mais ou menos nessa época também que Michael Jackson ‘descobriu’ que, na cidade grande, futebol não era coisa de mulher. Diferentemente do que acontecia em Valença, onde despertava aplausos e suspiros de quem a visse jogar, no Rio de Janeiro Michael começou a ouvir insultos.
“Foi na época que fui jogar no Radar, no Rio. Aí nos campeonatos, existia aquele preconceito. A gente ouvia de tudo. ‘Mulher não pode jogar bola, tem que ficar no tanque’, coisas do tipo. ‘Mulher que joga é sapatão, sai daí que não é lugar pra você’, eles gritavam isso em todos os nossos jogos. Mas eu nem dava bola. Eu pensava: a coisa que eu sei fazer de melhor é jogar. Então é isso que eu vou fazer e pronto”, sentenciou.
“Eu falava: essas pessoas que falam isso queriam estar no meu lugar. Não têm competência, aí falam mal de quem faz. Jogar futebol não é pra quem quer, é pra quem sabe.”
E Michael sabia jogar como ninguém. Daquelas jogadoras que têm faro de gol, velocidade e uma precisão no chute que impressionaria até os mais craques de bola. Ela sempre estava no lugar certo, na hora certa, pronta para empurrar a bola para o fundo das redes.
“Eu gostava de ver a rede balançando. Eu treinava muito. Tenho essa quantidade de gols porque meu objetivo era esse. Eu não chutava por chutar, chutava pra fazer o gol”, resume.
1.574 gols
‘Essa quantidade’ a que Michael se refere são nada menos do que mil quinhentos e setenta e quatro gols. A jogadora era simplesmente a artilheira de tudo quanto é competição que disputava. Tinha jogo que conseguia fazer mais de dez gols – se na época o futebol feminino estava começando a se desenvolver, o futebol dela já estava pós-graduado e fazia a festa em qualquer adversário que viesse pela frente.
A contagem de gols dessa época é que não era muito fácil de ser feita. Para se ter ideia, se até hoje nem mesmo a própria CBF tem contabilizados os gols de Marta com a camisa da seleção – e olha que Marta começou a jogar com a amarelinha no início dos anos 2000 – imagina o que se poderia ter de registro das artilheiras do passado?
“Eu tenho a revista Placar de quando eu cheguei a 800 gols, tinha uma matéria com isso. Mas é um dos poucos registros. Porque as federações, a CBF, não tinham as súmulas. Então quando eu fui pedir reconhecimento pra Fifa, eu tinha que mostrar todas as súmulas e isso era impossível no futebol feminino, então a Fifa não reconheceu. As federações e a CBF não tinham nenhum registro, até hoje não têm, então imagina naquela época.”
Se não tem o reconhecimento dos números oficiais, ao menos Michael ganhou o reconhecimento da história. Ela foi considerada a terceira melhor jogadora do século XX na América do Sul, pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). E agora ganhou também a chance de ser conhecida no novo projeto do Google que vai contar as trajetórias das mulheres no futebol. Seu nome já está no museudoimpedimento.com, a plataforma que o maior site de buscas do mundo desenvolveu para reunir as histórias esquecidas do futebol feminino no Brasil e agora também está na exposição inaugurada nesta segunda-feira no Museu do Futebol em São Paulo, a “Contra-Ataque: As Mulheres do Futebol”.
Um reconhecimento tardio e necessário, que ela – e as outras pioneiras do futebol brasileiro – esperaram muito tempo para acontecer.
“É uma coisa importantíssima, nossa história vai ser realmente esclarecida, contada. Muita coisa do futebol feminino ninguém sabe, só nos que passamos por isso, que vivemos isso. As pessoas precisam saber que teve alguém que começou tudo isso. Aí vai dar pra entender por que o Brasil não tem nenhuma medalha de Mundial . Porque ficou 40 anos impedido. Todos têm que ter esse conhecimento. Principalmente as mais novas”, afirmou Michael Jackson, que ainda sonha com um jogo de despedida na seleção
“Foi uma época difícil, mas eu faria tudo outra vez. Tudo com o maior carinho. Não mudaria nada.”