Não faz muito tempo que o Brasil teve outra camisa 10 brilhando dentro de campo no futebol feminino. Antes de Marta surgir, houve uma outra brasileira que encantou os olhos do mundo costurando no meio-campo, driblando quem aparecesse pela frente e fazendo golaços de fora da área com uma canhota poderosa. Sisleide Lima, que ficou conhecida desde sempre como Sissi, fez parte da primeira seleção brasileira de mulheres já formada, em 1988, e atuou com a camisa amarela até 2000. Só não jogou mais porque não deixaram.
O futebol foi um esporte proibido para mulheres no Brasil de 1941 a 1979 por um decreto-lei que dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” E, mesmo quando a proibição caiu na teoria, na prática as mulheres continuaram sendo impedidas de jogar por uma “convenção cultural” que sempre ensinou: bola é coisa de menino, boneca é coisa de menina.
Para Sissi, isso não foi exatamente um problema. Porque se não podia brincar com a bola do irmão em Esplanada, pequena cidade do nordeste baiano onde nasceu, ela “degolava” suas bonecas para fazer a sua própria. E foi assim, chutando cabeça de boneca, que a garota foi, aos poucos, mostrando ao pai que tinha talento. Ele bem gostaria que o filho fosse jogador de futebol. Restou contentar-se com a filha seguindo essa carreira. E olha que ela brilhou e, por muito tempo, foi a melhor 10 que esse país já viu entre as mulheres. O problema é que, hoje em dia, pouca gente sabe dessa história. E isso tem muito a ver com um simples corte de cabelo.
Já era uma rebeldia suficiente uma mulher da década de 1980 e 1990 querer jogar futebol. Mas raspar o cabelo? Aí já era demais. E foi justamente no auge de sua carreira, como artilheira da Copa do Mundo de 1999, quando o Brasil conquistou um terceiro lugar histórico, que a camisa 10 voltou para casa de cabeça lisa – literalmente. Ela tinha feito uma promessa de raspar o cabelo se a seleção conseguisse um bom resultado, e aí teve que cumprir. O que Sissi não imaginava era o efeito que seu mero corte de cabelo teria para a sociedade da época.
“O que eu passei, não foi fácil, não. Sofri preconceito de todos os lados, da CBF, das pessoas. Os olhares, os comentários. Mas chegou um momento que eu falei: não tô nem aí. Não é isso que vai me definir como pessoa. O importante é que eu me sinta bem comigo mesma”, disse Sissi às dibradoras.
O cabelo raspado passou a ser uma característica dela por muito tempo. Não por uma questão de “teimosia” em romper com os padrões que a CBF e a sociedade esperavam dela naquele tempo, mas porque a jogadora passou por um momento que marcaria para sempre sua vida. Quando atuava nos Estados Unidos, em 2000, Sissi atendeu o pedido de uma dirigente do clube para visitar um garoto de uma escola local que tinha câncer e sofria bullying por ser careca. O encontro dos dois gerou uma conexão eterna e, quando o menino faleceu, algum tempo depois, a jogadora decidiu usar sempre o cabelo daquele jeito para homenageá-lo.
“Aquela experiência mudou completamente minha vida. Parecia que a gente se conhecia há anos. Foi na base do espanhol, porque eu não falava inglês direito na época. Eu me senti realmente tocada com o que estava acontecendo com ele. Convidei a família dele pra ver os jogos, ele entrou no campo com a gente. Ele tinha 11 anos, muda a maneira como você vê as coisas. Depois que eu saí de lá, eu só chorava. Como pode um garoto com 11 anos, com a vida pela frente, estar passando por tudo aquilo? Até hoje eu falo para as minhas jogadoras: não voltem para casa nenhum dia sem terem conquistado algo. Porque amanhã vocês podem nem estar aqui.”
‘Tiveram que me engolir’
Foi Zagallo que se consagrou com essa frase, mas ela resume muito o que foi a passagem de Sissi pela seleção brasileira. Craque com a bola nos pés e contestadora, sem papas na língua, a presença da camisa 10 na seleção brasileira incomodava. Ela cobrava ali dentro o mínimo que as atletas não recebiam da CBF. E em campo entregava gols, assistências e uma categoria jamais vista no futebol das mulheres. Artilheira da Copa do Mundo de 1999 com 7 gols, artilheira do Campeonato Sul-Americano com 12, a camisa 10 foi o primeiro nome do futebol feminino do Brasil a ganhar o mundo.
Mas para a confederação, não ficava bem vender a imagem daquela seleção com uma mulher de cabelo curto, raspado, que fugia aos padrões considerados “femininos” na época.
“Na CBF, acho que chegou uma época que eles falaram ‘a gente tem que aturar’. Por ser a Sissi, eles tiveram que engolir o fato de eu ser daquele jeito. Eu lembro muito bem que outras pessoas eram selecionadas para dar entrevista por serem mais femininas. Mas em 1999, eles tiveram que me engolir. Porque eu estava jogando bem, fazendo gols, aí os jornalistas vinham e queriam entrevistar a Sissi, eles não tinham como falar não”, conta.
É dessa época também um episódio que hoje ela quer apagar da memória. Em uma sessão de fotos para uma revista que Sissi não se lembra qual era, a jogadora precisou se transformar. Maquiagem, roupas desconfortáveis, até batom, e um momento que ela descreve agora como “o pior da sua vida”.
“Na seleção, tive que fazer umas fotos para uma revista, aí tive que botar maquiagem. Depois eu falei: nunca mais vou fazer isso. Fazer essas coisas pra ser aceita. Falei: nunca mais vou deixar alguém me dizer o que eu tenho que fazer. Na hora, eu fiquei chocada. Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida. Pra ser aceita. Ter um lado feminino. Eu perdi vários convites pra fazer outras coisas nesse sentido depois, porque não aceitei mais”, relata.
O esporte sempre teve esse lado com as mulheres. Em vez de se exigir resultado, performance, exige-se beleza. Por muito tempo, essa ideia de “atletas-musas” predominou e o auge disso provavelmente foi quando o Campeonato Paulista de futebol feminino inseriu a beleza, literalmente, no regulamento em 2001. A regra falava em “enaltecer a beleza e sensualidade das jogadoras para atrair o público masculino”. E ali, cabelo curto para mulheres estava completamente proibido.
“Em 2001, teve o Campeonato Paulista e aí fizeram essa regra da beleza. Tinham me convidado antes para voltar a jogar no Brasil. Eu falei: dane-se, não preciso disso. Será que é tão difícil entender que o que a gente quer fazer é jogar e não mostrar beleza? A gente tem que mostrar talento. Eles achavam que iriam colocar público no estádio só com beleza, mas acho que o tiro saiu pela culatra”, afirmou Sissi.
‘O pão que o diabo amassou’
Sissi construiu uma história linda no futebol brasileiro. Foi craque do São Paulo nos tempos de auge do futebol feminino por aqui, entre 1997 e 2000, levando o time a conquistar tudo, incluindo dois títulos no Campeonato Paulista e um do Brasileiro e chegou a fazer a torcida tricolor gritar para o o técnico do time masculino na época, Muricy Ramalho: “ei, Muricy, coloca a Sissi”.
Na seleção, esteve no Mundial experimental de 1988, na Copa de 1995 e de 1999, e nas Olimpíadas de 1996 e 2000. Tem três títulos sul-americanos, um terceiro lugar no Mundial e dois quartos lugares nos Jogos Olímpicos. O que, se considerar o não investimento e o descaso com o futebol feminino à época, já é muito. Em 2017, foi considerada a quinta maior jogadora século pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS) – Pretinha e Roseli são as outras brasileiras da lista de 33 nomes.
Mas a decepção maior é ver toda essa história ser esquecida e ignorada, sem qualquer reconhecimento por quem a construiu.
“Nunca houve reconhecimento. Nada. O que eu vejo agora, as meninas que fizeram parte, elas estão abandonadas, não têm reconhecimento, oportunidade de trabalhar pelo futebol feminino. O que a gente fez, foi por amor, não tinha dinheiro nenhum na época. Eu não sei se vai ter uma seleção igual aquela. A gente passou por um bocado. Minha geração comeu o pão que o diabo amassou”, resume.
“São poucos os que reconhecem o que a gente fez no passado. Hoje a seleção está onde está por causa das gerações que vieram do passado. Quem fez parte daquela geração sabe o que a gente teve que passar pra fazer o que a gente amava. Foi aquele grupo que batalhou pra caramba. Eu fico puta quando não vejo esse reconhecimento. Aqui nos Estados Unidos é muito diferente. Essa geração nova, elas não esquecem o que a geração da Mia Hamm, da Brandi Chastain fez. Tá aí a diferença.”
Sissi hoje é técnica de uma equipe de futebol feminino de base nos Estados Unidos. Ela estará na França para acompanhar a Copa do Mundo – mas não a convite da CBF. A eterna camisa 10 tem pouquíssimo contato com a atual seleção, chegou a ser assistente pontual em um amistoso da equipe nos Estados Unidos em 2015, mas nem teve oportunidade de contar sua história para as meninas. “Eu só pude ouvir, não pude falar”, descreve. Um dos maiores nomes do nosso futebol nunca teve sequer um jogo de despedida.