Por Renata Mendonça e Roberta Cardoso
O cenário era aquele que já estamos acostumadas. Um campo de futebol, uma bola rolando e mulheres aguerridas dentro de campo buscando a vitória. A maioria delas não calçava chuteiras, improvisava tênis daqueles de solado baixo, meiões e uniformes maiores do que o tamanho que elas pareciam ter. Os cabelos variam o penteado, um mix de tranças, dreads e coques estilosos. Mas o olhar de todas elas é o mesmo: de liberdade.
“Podemos falar com vocês?”, perguntamos. “Sim, senhora”, responde uma delas. “Podemos falar depois do jogo, senhora?”. O “senhora” é uma constante no vocabulário dessas garotas de 12 a 17 anos que estão acostumadas a uma rotina cheia de regras. Elas são reeducandas da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) e cumprem medida socioeducativa, mas estão ali para fazer o que mais gostam: jogar bola. Esse é o VI Torneio de Futebol Society organizado pela instituição, que reuniu mais de 40 meninas de quatro unidades socioeducativas do Estado de São Paulo no Clube Esperia, na zona norte de São Paulo.
“Eu nem dormi essa noite. Acordei o tempo todo para ir no banheiro. O monitor até brincou, perguntou se eu precisava de fralda”, contou Cristina* aos risos. Naquele dia, elas tiveram uma aula antes de partirem para o campeonato no clube. Mas nem dava para prestar atenção na matéria. O foco estava nos jogos que aconteceriam durante o resto da manhã.
Eram quatro equipes: Parada de Taipas e Chiquinha Gonzaga representavam as unidades da capital paulista, Cerqueira Cesar e Anita Garibaldi são unidades do interior do Estado. Nos primeiros confrontos, deu para notar o nervosismo delas dentro de campo. E algumas começaram a discutir entre si.
“Algumas não passavam a bola, estavam sendo fominhas. A gente começou a brigar em campo. Mas aí no segundo jogo, o ‘profe’ veio falar que assim a gente não chegaria a lugar nenhum. Acho até que se a gente não tivesse tido essas discussões no início, dava pra ter sido campeãs”, confessou Marcela*.
Algumas das meninas ali tinham jogado futebol na rua nos tempos de infância, outras tinham tido pouco contato com a bola antes da Fundação Casa. Todas tinham enfrentado um preconceito em comum. “Ah, meu pai dizia que jogar bola não era pra menina né. Ele me mandava lavar louça”, contou uma delas, enquanto as outras concordavam na hora. “Falavam que futebol era coisa de menino, que a gente tinha que ir pra cozinha”, completou outra.
Do futebol feminino nacional, pouco conheciam também. “Não passa na TV né?”, falou Cristina. “Só sei daquela…como é o nome mesmo? Aquela da Copa…”, Marcela se esforçava para lembrar. “Mmm…Marta?”, todas assentem. Ali elas iriam viver um dia de Marta em campo, guardadas as devidas proporções.
O cenário
São seis casas que abrigam somente meninas no Estado de São Paulo e o tempo máximo de reclusão que elas cumprem é de até três anos. Os motivos mais frequentes que levaram as garotas à internação são principalmente tráfico de drogas e roubo.
O período de reclusão proporciona diariamente a elas estudo (ensino médio), atividades físicas e cursos profissionalizantes.
Carlos Alberto Robles tem 55 anos, é formado em Educação Física e há 33 anos trabalha na Fundação. Hoje ocupa o cargo de Gerente de Esportes e nos contou que os meninos jogam a Copa Casa (torneio de futebol) há 15 anos. O torneio para as garotas foi implantado há apenas seis.
“Temos um calendário esportivo anual para meninos e meninas. As modalidades que eles praticam, elas também praticam. Começamos essa iniciativa (de futebol feminino) em 2014, em parceria com o Corinthians e realizamos por três anos consecutivos o Campeonato no Parque São Jorge. Também fizemos uma edição no Sesc Sorocaba e desde o ano passado fazemos aqui no Clube Esperia”, nos contou Robles.
Para ele, proporcionar o esporte para as internas faz parte de um processo de transformação pessoal. “Trabalhamos o esporte como uma ferramenta de aproximação e de estabelecer vínculo com o próximo e a partir disso, começamos um processo educacional de passar os conteúdos, as nossas diretrizes e os benefícios do esporte, sempre focado na formação do indivíduo. As meninas que sentem a necessidade da prática esportiva, já entram numa rotina muito tranquila, especialmente na questão de disciplina. Elas absorvem essa organização muito mais rápida que os meninos”, completou Robles.
As escaladas
Para participar do Torneio, as “convocadas” precisam garantir bons resultados na escola, realizar cursos profissionalizantes e cumprir as regras disciplinares. Os juízes recebem relatórios trimestrais sobre o desenvolvimento das garotas durante o período de reclusão.
No campeonato os jogos foram disputados em pontos corridos, onde todos os times se enfrentaram, com chaves definidas por sorteio.
Algumas jogavam futebol desde pequenas, a maioria com o incentivo dos irmãos. Outras conheceram o esporte na Fundação e se apaixonaram, como é o caso de Paula*, de 19 anos e que cumpre medida socioeducativa há um ano e oito meses.
“Desde os meus 12 anos tenho vivência com o esporte, mas fazia atletismo. Praticava revezamento 4×4, lançamento de dardo, peso, salto em barreira. Treinava em Ourinhos, em um centro esportivo gratuito, mas futebol e vôlei eu nunca tinha jogado, comecei a praticar na nossa casa”, contou à reportagem.
Quando Paula chegou na Fundação Casa estava sem estudar há três anos e começou a cursar a sétima série. Hoje, com 19 anos, ela está no primeiro ano do colegial. “Parei de estudar porque me casei com 15 para 16 anos. Agora estou separada. Fiquei casada por dois anos e quando fui cumprir a medida socioeducativa ainda estava com ele”, disse a garota, reforçando que seu casamento chegou ao fim por conta da reclusão.
“Querendo ou não, para o homem é muito difícil ter a responsabilidade de ir lá me ver. As técnicas lá da casa tinham permitido que ele fosse me visitar, só que ele nem ia”, completou.
A vivência esportiva que teve agora fez Paula ter uma nova paixão. Ela pretende seguir com isso quando deixar a Fundação. “Como sempre gostei de esporte, não foi tão difícil (praticar outras modalidades), eu fui descobrindo algumas mobilidades do meu corpo, onde eu conseguia chegar e gostei. Essa foi a primeira vez que participei do campeonato de futebol e dei o máximo de mim. Quando sair da Casa, vou fazer uma coisa que gosto e ser professora de Educação Física. Agora eu estou aprendendo para depois ensinar, se Deus quiser. Não quero parar por aí, não. Não sei se irei retomar ao atletismo, mas jogar um fut, um vôlei, isso aí eu vou jogar, sim.”
Já para Vitória*, de 18 anos, o amor pelo futebol sempre existiu e ainda vive dentro dela. “Jogo desde pequena, foram meus irmãos que me ensinaram a jogar bola e eu sempre me interessei. Já joguei em escolinha e aí cresceu um negócio dentro de mim e eu falei que iria conseguir”, disse.
Vitória jogou futebol de campo em uma escolinha no Jardim Irene, onde morava. Participou também de alguns campeonatos e ainda sonha em ser jogadora de futebol e para isso conta com o apoio da mãe. “Meu pai nunca foi presente, mas minha mãe sempre me apoiou. Já é a segunda vez que participo do campeonato da Fundação CASA e quando sair, penso em fazer testes pra ser jogadora. Já falei com a minha mãe e ela disse que se for preciso ela me ajuda. Nunca desisti, é um negócio que eu gosto e me incentiva muito”, revelou.
Entre as jogadoras que admira, a garota cita Cristiane, Marta e Formiga. “Amo elas. Vejo o futebol feminino sofrendo preconceito porque para os homens, as mulheres não servem pra nada. Eu nunca sofri preconceito, mas depois que comecei a jogar muitas pessoas me disseram que eu não iria conseguir. Meus primos diziam isso por conta de estar um pouco mais velha. Aí eu fui desistindo, mas eu nunca deixei de sonhar. Espero que eu consiga realizar”.
Sobraram gols e lances bonitos das meninas que mostravam intimidade com a bola nos pés. Era o caso de Rita*, um dos destaques do campeonato . Alta, com habilidade e boa movimentação, ela fez cinco gols em uma das partidas e nos contou que também começou a jogar futebol aos 12 anos, com o irmão. “Jogava na rua com os moleques, era mais difícil (encontrar meninas). Mas meu irmão sempre me chamava pra jogar no time dele.”
Rita revelou que apesar de jogar, enfrentava preconceito e ouvia as pessoas a chamarem de “maria-macho”. E perguntamos: “Os caras não gostam de tomar gol de menina, né?”, com sinceridade, a garota respondeu: “Não, eles perdem a linha.”
A artilheira do dia perdeu as contas dos gols que marcou, mas cumpriu uma promessa que fez. “Não sei quantos gols fiz hoje, mas prometi para o ‘profe’ que iria fazer dois pra ele”, contou.
Carlos Esduardo Papaterra, de 45 anos é o “profe” de Educação Física da Casa Feminina Parada de Taipas, localizada na Zona Norte de São Paulo. Ele trabalhou por cinco anos com atividades físicas para os meninos e agora está há três com as meninas.
“Quando cheguei no feminino, senti um choque muito grande porque as meninas não têm o hábito de praticar esporte. Então foi uma barreira enorme pra gente conseguir trabalhar isso com as elas. É pouco tempo de atividade física semanal, são apenas 3 horas. Então pra você conseguir fazer com que elas gostem, foi difícil”, afirmou. “Algumas delas tem aptidão e gostam, mas tem aquelas que nunca jogavam porque também não estudavam, cabulavam aula, então não tiveram essa vivência”, completou.
Eduardo contou que durante os anos em que deu aulas em escola estadual percebia a diferença na maneira como os meninos viam o esporte e como era a visão das meninas. “Os meninos jogavam futebol na quadra, e o cantinho ficava com as meninas jogando vôlei ou conversando. A gente procurava envolver, fazer coisas com outras modalidades, mas era difícil. Hoje, na Fundação, a vivência delas com o esporte mudou 90%, mas o processo é lento. A gente foi trabalhando e colocando isso como meta da própria medida pra elas. Mostrando a importância de não só estar, mas também de participar da atividade”, observou.
Esta foi a primeira vez em três anos que Eduardo saiu com as garotas para disputar um campeonato. E sua estreia foi em grande estilo, já que a sua equipe foi a campeã. Para as meninas em campo, ficou a lição do trabalho em equipe que as fez chegar juntas até ali. “É legal jogar né? Porque a gente também aprende bastante. A gente tem que trabalhar em grupo e isso ajuda”, disse uma delas. “Bem que a gente podia jogar outros campeonatos no ano também né?”, já sugeriu a outra.
Um dia tão significativo na vida dessas garotas com uma vivência tão simples: a bola. Apesar de reclusas, não é possível aprisionar o amor pelo esporte. Ele é livre e ganha vida em qualquer circunstância.
*As personagens foram retratadas na matéria com nomes fictícios.