Nada. No mundo ideal, esse texto acabaria aqui. Aliás, no mundo ideal mesmo, esse texto sequer precisaria existir. Mas vendo os comentários de mais um caso de assédio sofrido pela repórter Jenny Sushe ao entrevistar o lutador de boxe búlgaro, Kubrat Pulev, fica evidente que esse é um assunto que, infelizmente, não pode sair de pauta neste momento.
O vídeo mostra a jornalista entrevistando o lutador, que por diversas vezes mira sua boca com o olhar. Até que ao final da última pergunta, ele força um beijo. Não foi nem um beijo no rosto, foi um beijo na boca que durou alguns segundos. A repórter olha para câmera com um riso nervoso, um sinal que muitos interpretaram como de alguém que “gostou” do beijo. Uma interpretação bem vazia que esquece ou ignora o contexto por trás de um beijo forçado em uma mulher.
+Essa foto fez uma atleta australiana sofrer assédio e abuso online
Primeiro que não existe “gostar” ou “não gostar” de um beijo forçado. Porque ele simplesmente não deveria acontecer. Nunca. Em qualquer circunstância. Então a discussão “ah, mas ela gostou” apenas não existe porque é debater algo que nunca, sob nenhuma hipótese, deveria ter acontecido. Esse debate é tão surreal quanto discutir se é possível gostar de um soco na cara. Um soco na cara não é desejado, não é pedido, é uma violência e ponto. É exatamente isso que um beijo forçado significa para uma mulher: uma violência – em qualquer circunstância.
Posto isso, é preciso voltar ao ponto que faz essa ou qualquer outra repórter “sorrir” depois de uma violência como essa. Não é riso de felicidade, é de nervoso, é de revolta, é de quem não sabe como agir. Voltemos ao soco na cara. A não ser que você esteja em uma luta de boxe ou MMA ou afins, você não espera receber um desses. Se você está conversando com alguém na rua e, absolutamente do nada, essa pessoa te dá um soco, dificilmente sua reação será revidar imediatamente. Seu cérebro leva alguns segundos processando o que aconteceu, para depois reagir.
E se você é uma mulher, você tem a única resposta que aprendeu a ter durante a vida inteira em situações constrangedoras e/ou abusivas/violentas. A resposta é o silêncio, o sorriso, o aceite. É assim mesmo, afinal. Desconhecidos vão dizer coisas absurdas para você na rua, não responda, abaixe a cabeça e siga calada. Pode ser que passem a mão em você no transporte público, finja que não sentiu. Vão puxar seu cabelo na balada, segurar suas mãos, apertar sua cintura, normal, quem vai para a balada sabe que é assim mesmo. Vão gritar para você no estádio, puta, vadia, vagabunda, acontece. Vão forçar beijos indesejados em situações que constrangem, mas relaxa, é só brincadeira, você não tem senso de humor?
A vida inteira, nós ensinamos as meninas que essas são coisas com as quais “elas vão ter de lidar” ao longo da vida vem no pacote de “ser mulher”. E nós aprendemos bem tudo isso. Calamos, consentimos quando não queremos consentir, abaixamos a cabeça para tentar não desagradar. Aceitamos a “ordem natural das coisas” e sorrimos de nervoso, mas sorrimos. Até o dia em que, juntas, nos levantamos para gritar. E encontramos eco na nossa voz. A partir daí, não tem mais beijo forçado que passe, não tem mais “ela gostou”, “ela usou decote”, “ela pediu”. Uma violência será sempre uma violência, sob qualquer circunstância. Justificar uma violência é como justificar um soco na cara – você já perdeu qualquer razão no momento que partiu para ela.
É por isso que o debate sobre “o que a repórter fez para que isso acontecesse” não existe. Porque, a não ser que ela tivesse dito “pode me beijar agora”, nenhuma, absolutamente nenhuma atitude poderia justificar o que acontece em seguida. Só que enquanto nós crescemos aprendendo a aceitar esse tipo de atitude, os meninos cresceram entendendo que eles poderiam provocar essas situações. Que o não nem sempre significa não – é quase sempre sim, aliás, basta insistir um pouco. Que beijo roubado “é mais gostoso”. E que é engraçado constranger uma mulher em público.
Por muito tempo, isso foi uma realidade, é preciso admitir. Mas não é mais. Na semana em que se celebra o aniversário do surgimento do movimento “Deixa Ela Trabalhar”, casos como esse chegam para mostrar o tamanho da importância dessa união. No Brasil, há exatamente um ano, as repórteres esportivas entenderam que não precisariam mais aceitar nada disso. Unidas, elas gritaram, e essa voz encontrou eco em todo o país. Veio a Copa do Mundo da Rússia e, para cada tentativa de beijo forçado nas jornalistas, a resposta vinha mais forte – agora não em forma de riso, mas em um pedido firme: respeito. Hoje, muitos já entenderam que esse comportamento não é mais aceitável. Outros ainda estão nesse processo. A única certeza em meio a tudo isso é que não nos calaremos mais.