No esporte, as últimas décadas já mostraram: o futuro também é feminino

 

Acervo Museu do Futebol (Foto: Roberta Nina/dibradoras)

Eu não sou tão velha assim. Nem tenho 30 anos de vida, mas me atrevo a contar aqui uma história “curta” e que pode dizer tanta coisa do futuro.

Tem uma frase famosa que hoje se repete por aí. “O futuro é feminino”. Pode parecer arrogante dizer que o mundo daqui a alguns anos será “delas” – ainda mais no esporte, um dos meios mais excludentes para as mulheres. E é óbvio que eu não sou isenta pra dizer isso. Mas preste atenção nessa história, porque, na verdade, é ela quem diz.

Acervo de notícia do Museu do Futebol, em São Paulo (Foto: Roberta Nina/dibradoras)

Quando minha mãe nasceu, em 1955, mulheres eram proibidas de jogar futebol. Isso por lei, porque tinham uma série de outras proibições que não eram oficiais, mas existiam. À minha mãe, não foi permitido sonhar com uma carreira, mas sim com casamento e filhos. Minha mãe nunca praticou esportes na infância, nem tinha interesse por eles.

Mas ela “herdou” (sem ter muita opção pra negar) todos os dotes culinários da minha avó. Aprendeu desde cedo a limpar a casa, arrumar a mesa, a dizer sempre sim, não ser desagradável. E, de uma forma meio indireta, aprendeu que esporte não era algo pra ela. Ela brincava de boneca, o irmão mais velho jogava bola na rua. Minha mãe não teve a opção de escolher a boneca ou a bola – isso simplesmente veio “naturalmente” de acordo com o pacote que ela recebeu quando nasceu menina.

Corta. Eu nasci em 1989. Um ano depois que a primeira seleção de futebol feminino foi formada. Dez anos após o fim do decreto-lei que proibia as mulheres de jogar, lutar e fazer coisas “incompatíveis o corpo delas”. Mas o que caiu foi a proibição formal, porque nossas vidas continuaram restritas a sonhos que não eram nossos, que tinham sonhado pra gente. Ainda existia o tal “lugar de mulher”, e ele definitivamente não era no esporte. 

Primeira seleção feminina formada em 1988 (Foto: Acervo pessoal/Museu do Futebol)

Ganhei vestidos rosas e bonecas. Mas sempre me interessei mais pelo autorama, pelo futebol de botão e pela bola do meu irmão. E tive a sorte de ter pais que me permitiam brincar com tudo isso. Eu sujava todos os meus vestidos no quintal, voltava pra casa com a perna roxa, dava cambalhota no sofá e abria a testa, driblava todos os móveis da sala com uma bola de meia, e estava “tudo bem”. Eu odiava ballet, e estava tudo bem. Só que não era tudo assim tão lindo, um mar de possibilidades. Porque na escola, tinha só uma menina da sala que jogava bola. Todo dia, ela estava na quadra com os meninos e todo dia eu ouvia comentários sobre “o que ela estaria fazendo ali”, e sobre o quão “estranho” era isso. Nunca tive coragem de me juntar a ela – mas sempre tive vontade.

(Foto: AFP)

Aí escolhi o vôlei, porque era um caminho mais “fácil”. Meninas podiam jogar vôlei, era até moda na época. E o vôlei foi uma das paixões pelo esporte que levei até hoje. Mas não parou aí. Eu também fiquei fanática por futebol, e tive que “brigar” com meu pai pra ele me levar ao estádio. Na escola, perdi as contas de quantas vezes tive de responder “o que é impedimento”. Na faculdade, decidi que queria ser jornalista esportiva e passei muito tempo precisando “provar” minha capacidade todos os dias para ocupar esse espaço.

Corta. De lá para cá, se passaram 30 anos. Em 30 anos, as mulheres ocuparam os campos, os tatames, as pistas, as piscinas, as arquibancadas. A seleção feminina de futebol conquistou duas medalhas olímpicas e um vice-mundial. A de vôlei conquistou um bicampeonato olímpico. O judô  ganhou ouros históricos, como o de Sarah Menezes e Rafaela Silva, e muitas outras conquistas. A natação feminina foi ouro no Mundial e também ganhou medalha olímpica. E até o boxe feminino, modalidade proibida na olimpíada até 2012, conquistou medalha para o Brasil.

Etiene Medeiros, campeã mundial em Doha (Foto: Satiro Sodré / SSpress)

E quando digo que o futuro é feminino é porque isso fica muito claro quando a gente vê o que acontece nas escolas hoje em dia. Quando não deixam as meninas jogarem, elas OCUPAM A QUADRA. Quando as proíbem de usar short, elas fazem protesto e “shortaço”. Quando as proíbem de disputar campeonatos, elas fazem a revolução: insistem, resistem, e não desistem até conseguir. Não existe mais “aceitar seu lugar no mundo”. Hoje as meninas estão plenamente conscientes de que os sonhos que vão viver são os delas próprios, e não os que escolheram para elas.

Ela vai para a cozinha se quiser, e vai para o campo se assim preferir. Foi essa força e consciência que fizeram Natália persistir após muitos “nãos”, para conseguir cavar seu lugar no Avaí aos 9 anos. Foi isso que fez com que Maria Clara colocasse a boca no mundo até que a deixassem jogar no Maranhão. Esse é o recado: se elas quiserem, elas vão jogar. Não é um regulamento ultrapassado que vai impedir – como já impediu Marta no passado. Hoje, as meninas sabem que têm direito de ter voz.

(Foto: Arquivo pessoal)

Então para quem já enfrentou tudo isso, proibição, preconceito, portas fechadas, o mundo inteiro dizendo não, e mesmo assim venceu, digam aí: qual é a forma de fazê-las parar? Como ousar imaginar que o futuro não vai ser delas? 

A luta das mulheres (no esporte e na vida) até aqui foi árdua e não foi e nem é em vão. O futuro é nosso, porque se estivermos juntas, ninguém pode nos parar.

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