
Uma mãe e um pai levam sua filha pequena para acompanhar um jogo de futebol no estádio. Essa é a maior paixão nacional, e eles querem introduzir a garota desde cedo ao amor pela arquibancada. Na entrada da partida, a recepção veio em forma de gás lacrimogêneo e bomba de efeito moral. Essa mãe e esse pai correm desesperados com a menina no colo.
A imagem é registrada por um dos fotógrafos que cobria o evento. A confusão aconteceu porque dirigentes de Vasco, Fluminense e da Federação carioca (Ferj) não conseguiram chegar a um acordo sobre uma questão simples: de que lado do estádio cada torcida iria ficar. Resultado? A torcida ficou do lado de fora, em meio a bombas, gás e tiros de bala de borracha, milhares de torcedores corriam para se proteger. A imagem choca. E, de quem é a culpa de tudo isso?
Da mulher, claro.
Onde já se viu querer levar filho pequeno para jogo de futebol? Quanta irresponsabilidade dessa mulher, não é mesmo? Então ela não sabia que isso poderia acontecer? Que, diante de todo o imbróglio, o melhor mesmo era ficar em casa? Como pode ter exposto sua menina a uma situação dessas? Um absurdo. Detalhe: o pai esta ali também, mas ninguém se lembrou de criticá-lo por isso.
Essa é a interpretação que muita gente está fazendo da foto abaixo, de autoria de Alexandre Cassiano, fotógrafo dos jornais O Globo e Extra, que veio na capa do primeiro hoje para ilustrar a barbárie protagonizada no Maracanã no último domingo. Pronto, encontrem o erro.
Ver esta publicação no Instagram
Uma publicação partilhada por Mulher, Esporte e Futebol (@dibradoras) a
É inacreditável que, diante de atitudes infantis dos dirigentes dos dois clubes envolvidos neste jogo e também da própria Federação, que não conseguiu viabilizar uma solução para o impasse, a culpa do desespero dessa mãe e dessa criança no entorno do Maracanã seja dela própria.
Seria o mesmo que dizer que você é o culpado pelo furto do seu celular em um bloco de carnaval, afinal de contas QUEM LEVA CELULAR PARA BLOCO E ACHA QUE VAI PASSAR ILESO? Se você já sabe que os furtos de celulares quadriplicam nos blocos, por que cargas d’água irá levar seu celular para um deles? Está pedindo para ser roubado, né?
Não, não é. Assim como você deveria ter o direito de ir a quaisquer blocos de carnaval com seu celular à mostra sem medo de ser feliz (ou de ser roubado, por assim dizer), torcedores e torcedoras deveriam ter o direito de frequentar o estádio com seus filhos quando bem entenderem sem terem sua integridade física ameaçada. Como bem descreveu o autor da imagem mais chocante do Maracanã neste domingo, o absurdo não é uma mãe levar sua filha ao jogo. O absurdo é o estádio ter se tornado esse ambiente de guerra que afasta dele aqueles que são a essência do futebol: os torcedores.
“O fato de ela estar sendo questionada é um absurdo. Mostra como a gente está acostumado com várias situações de violência e a gente acaba achando natural. A sociedade acaba culpando as vítimas. É um absurdo o que estão falando dela. Estranho é ela não poder levar a filha para o estádio, cara! Ninguém poder levar o filho para o estádio hoje em dia, isso que é estranho. É isso que a gente tem que estranhar, e não o fato de ela ter levado”, destacou Cassiano em entrevista às dibradoras.

“Eu já levei minha filha, que é pequena também, para vários jogos no Maracanã, clássicos, e tudo mais. Eu acho absurdo as pessoas não acharem normal levar criança. Uma cena como essa é que não deveria ser normal. Eu fotografei com esse olhar, de ser um absurdo acontecer tudo isso com tantas famílias que estavam em volta. Inclusive eu fui fazer a torcida que estava barrada antes do jogo começar, eu vi muita criança, muita família, casais com dois, três filhos, várias crianças dessa idade, ela foi só uma das pessoas, uma das mães que correram com seus filhos ali. Em momento nenhum, desde que começou esse imbróglio todo se vai ter torcida ou não, pensaram nisso, nas consequências para o torcedor.”
A torcedora em questão foi inundada por mensagens de pessoas desconhecidas que a condenaram por estar com sua filha naquela situação. Engraçado que o pai da criança, o mesmo que aparece atrás dela na foto que viralizou ou ao lado, como na imagem principal desse post, não recebeu nenhum comentário a esse respeito. Nenhum julgamento, nenhuma crítica, nada. A culpa daquela criança estar passando por essa situação desesperadora não era dos dirigentes que geraram a confusão, da Federação organizadora da partida, nem das autoridades que jogaram as bombas para dispersar a multidão. A culpa era tão somente da mulher, a mãe, foi ela quem “permitiu” que tudo isso acontecesse.
E segue esse tratamento ao torcedor carioca. #trmaraca pic.twitter.com/yum4HXg1RF
— Amanda Kestelman (@amanda_kest) February 17, 2019
Assim como a culpa dessa mulher ter sido espancada e ter tido o rosto desfigurado de tantos socos e golpes que levou do homem que dormia ao seu lado é dela própria, por ter deixado “um estranho entrar em casa”. Quem mandou, né? O erro não está na violência contra a mulher, está na mulher que permitiu a violência contra ela própria. Onde já se viu?
“Ah, mas eu jamais faria isso, levar uma filha para um jogo desses”. O que você faria ou não faria diz respeito somente a você. Cada um tem uma percepção sobre as coisas, e uma atitude diante das situações. O fato de, na sua avaliação pessoal, um jogo desses representar perigo a uma criança não muda o fato de ser um absurdo um jogo desses representar perigo a uma criança. O que a gente precisa tratar é a causa, não a consequência. Um jogo de futebol precisa ser seguro para qualquer pessoa no estádio, da idade que for, do gênero que for, da orientação sexual que for. Se não é, tem problema aí. E a solução do problema não é tirar as pessoas do estádio – e sim tirar a violência, a truculência, a insegurança, do estádio.
“A foto mostra a falta de preocupação de quem está envolvido nessa história, dirigentes, federação… a falta de preocupação deles com o bem-estar do torcedor. Porque é por essas situações que você acaba excluindo esse tipo de público do estádio, o que no meu modo de ver é algo muito ruim. A presença de criança, das famílias, é isso que faz o futebol ser legal”, resumiu o fotógrafo.
Imagens como essa são emblemáticas para mostrar como o futebol está se afastando de seu verdadeiro dono, de sua verdadeira essência: a torcida.