Para além das encaradas: vida de árbitra tem até sabotagem em teste físico

Foto: Pei Fon/Portal TNH1

A situação pela qual a árbitra-assistente Raquel Barbosa passou em partida do Campeonato Alagoano levando uma encarada do goleiro do Murici – que ficou a apenas alguns centímetros de encostar no seu rosto – chocou muita gente, mas não é nem um pouco incomum na vida das menos de 100 mulheres que encaram o desafio de atuar na arbitragem no Brasil.

Entre as situações vivenciadas por elas, existem diversos casos de assédio fora dos gramados e até dentro deles (de comentários inapropriados ditos por jogadores ou pelos torcedores), sabotagem em testes físicos para impedi-las de completar e até agressões físicas nos casos mais graves.

+Assédio, preconceito e exclusão: como é ser árbitra no futebol

A própria Raquel já não consegue mais contar nos dedos as tantas vezes em que vivenciou situações de preconceito no gramado. Não é uma questão de xingar – como se faz com a maioria dos árbitros também -, mas é a tentativa de colocar a mulher “no seu lugar”. “A gente ouve principalmente aquelas coisas de ‘volta para a cozinha’, ‘vai lavar louça’. Até mesmo de mulheres”, relatou a assistente em entrevista ao podcast das dibradoras.

O caso que mais a chamou a atenção nem foi esse da encarada do goleiro do Murici – esse ela encarou como situação de jogo, e até reiterou que não considerou um caso de machismo -, mas sim um outro episódio em que precisou “driblar” um torcedor que insistia em segurar seu cabelo pelo alambrado – por mais bizarro que isso possa parecer.

A árbitra Regildênia de Moura (Foto: Globoesporte.com/Divulgação)

Isso é constante, você escuta várias coisas, principalmente da torcida, é um coral maravilhoso que você escuta muita coisa. Hoje eu levo na esportiva, não levo para o lado negativo. Mas quando passa para dentro do campo você precisa se impor mais. Até por ser mulher, a predominância é masculina, você tem que ter uma conduta muito ética e mostrar que você está ali para trabalhar”, pontuou ela.

“Eu passei por uma situação no estadual aqui, num estádio do interior, em que o alambrado era muito próximo da torcida. Eu lembro que algumas vezes que eu parava próximo do alambrado, e o torcedor puxava meu cabelo por trás. Acredito que ele queria me desconcentrar do lance. Você acha que nunca vai passar por uma situação dessas, né, mas aconteceu.”

Agressões e sabotagem no teste

O universo da arbitragem no futebol ainda é bastante restrito aos homens. O Brasil ainda foi pioneiro quando teve Silvia Regina apitando jogos na elite do Campeonato Brasileiro em 2003 – algo que, na Alemanha, por exemplo, só aconteceu há dois anos -, mas atualmente as mulheres representam apenas 10,28% do quadro de árbitros da CBF. São 752 homens atuando na arbitragem (248 árbitros principais, 355 assistentes e 149 analistas de desempenho), e 86 mulheres (sendo 18 árbitras, 59 assistentes e 9 analistas).

Encaradas com os assistentes não costumam ser tão de perto (Crédito da Foto: Fotoarena)

Por tudo isso, o preconceito ainda prevalece nessa área a ponto de gerar situações como a vivida por Roseane Amorim da Silva, árbitra federada pelo Acre, que acabou impedida de finalizar um teste físico por uma agressão de um árbitro que não havia conseguido terminar o percurso. Para contextualizar, existem índices femininos e masculinos para a arbitragem que vai atuar nessas competições. Para que mulheres atuem em torneios masculinos, elas precisam atingir o índice masculino nos testes físicos, como Rose estava tentando fazer.

A árbitra Edina Alves Batista e as assistentes Neuza Back e Tatiane Sacilotti foram escolhidas pela FIFA para trabalharem na Copa do Mundo FIFA Sub-20 Feminina 2018 (Foto: Kin Saito/CBF)

“Fui fazer o teste da CBFFS, Confederação Brasileira de Futsal, e um certo árbitro desistiu do teste. Eu já tinha passado no índice feminino mais continuei para alcançar o índice masculino, aí quando estava faltando apenas uma volta pra concluir o teste, esse árbitro veio e me agarrou e disse que não ia deixar eu concluir a prova masculina pois ele não tinha conseguido”, contou Rose.

“Fiquei revoltada, ninguém ali fez nada, aí tive que fazer novamente o teste e passei. Mas essas situações mostram que a nossa realidade ainda é a pior possível”, observou.

Há casos também de agressão, como o que aconteceu com Pamela Joras em um torneio na cidade de Arroio do Sal, no litoral do Rio Grande do Sul. Ela foi agredida em campo por um jogador de um dos times envolvidos na partida, que dizia: “aqui não é teu lugar, teu lugar é na cozinha”. O homem acabou denunciado na delegacia da mulher. Há outras situações assim como a que aconteceu com Francielly Fernanda, que levou um soco após ter dado o segundo amarelo para um jogador em uma partida do futebol amador de Minas Gerais.

Oportunidade

É claro que a falta de respeito com a arbitragem não se limita às mulheres. Os jogadores também têm comportamentos questionáveis nas reclamações com os árbitros e costumam não economizar nos palavrões ao falar com eles – mesmo mantendo as mãos para trás num suposto sinal de respeito.

Só que com as mulheres muitas vezes as palavras envolvem o tradicional recado de: este não é seu lugar. As árbitras passaram a vida ouvindo isso, como descreveu Raquel, que está há 10 anos na arbitragem. Renata Ruel, assistente que atua há 15 anos no estado de São Paulo pontuou que algumas dessas situações acabam sendo mais incisivas quando acontecem com mulheres.

“Vivi essa situação de encarada algumas vezes na carreira, tem aquela foto emblemática que aconteceu em 2013, um jogo da segunda divisão do Paulista. Essa é emblemática, a da Raquel é emblemática, mas você vê fotos assim com homens? Acho que reclamações assim, tão contundentes, essa encarada rosto a rosto, não é tão comum com os homens”, disse a assistente.

De todas as formas, Renata e Raquel ressaltaram a importância do respeito ao trabalho do árbitro em geral, independentemente do gênero. “O árbitro merece o respeito porque é um ser humano como qualquer outro que está ali trabalhando”, afirmou Raquel.

Mas para mudar a realidade da arbitragem feminina, elas acreditam que é preciso dar mais oportunidades às mulheres nessa área. Muitas dessas que fazem parte do quadro da CBF, acabam não sendo muito escaladas e isso faz com que não adquiram a experiência necessária para atuar em jogos decisivos. Consequentemente, o trabalho dessas mulheres na arbitragem fica mais “escondido” e deixa de inspirar as meninas que gostariam de ter essa carreira como uma opção para seus futuros.

“Hoje eu estou na arbitragem porque um dia assisti a um jogo e vi uma mulher trabalhando na partida, que era a Ana Paula Oliveira. Isso inspira você a querer estar ali também. É preciso ter muito profissionalismo, muita competência para continuar lutando. E oportunidade, essa é a palavra principal. A mulher tem capacidade de atuar em qualquer área que desejar”, ressaltou Raquel.

 

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