Quando estamos vendo um jogo de futebol na televisão, sobra para todo mundo. O atacante ruim, o zagueiro perna de pau, o goleiro frangueiro, o juiz que não sabe as regras, e assim por diante. Não dá para passar 90 minutos vendo uma partida sem fazer nenhum comentário sobre o que está acontecendo em campo.
Em geral, esses comentários costumam ter como alvo quem está em campo ou, no máximo, quem está na beirada dele, os treinadores. A não ser quando a voz que conta o que está acontecendo no jogo soa esquisita para quem está assistindo. Quando é uma mulher a responsável por narrar a partida, os comentários futebolísticos acabam até ficando de lado para dar lugar às críticas direcionadas a ela. “Voz de mulher não combina com futebol”, é aquela clássica e frequente, que Renata Silveira se acostumou a ouvir (ou ler) toda vez que está no comando dos microfones do Fox Sports para narrar um jogo.
“Eu sempre leio tudo o que falam sobre um jogo que eu narro, vou lá na hashtag e busco tudo. As críticas eu pego, tento melhorar, trabalhar naquilo. Mas quando é apenas aquele ‘voz de mulher nao combina’, aí você joga fora. Hoje em dia, fico cada dia mais surpresa com os comentários. Lá em 2014, quando fiz a primeira vez, a grande maioria era comentários de gente criticando. Na Copa era um pouco assim também. Mas agora a maioria das mensagens está sendo bem positiva”, relata a narradora, que estreou na profissão após um concurso da rádio Globo em 2014, depois venceu o processo seletivo da Fox e foi uma das narradoras duranta a Copa do Mundo da Rússia e, desde setembro, virou contratada do canal para a função.
“Eu estou começando e, muitas vezes, a galera quer me comparar ao Galvão Bueno, ao Milton Leite. Eu cometo erros, sim, mas não porque sou mulher, e sim porque estou começando. Meu objetivo é chegar o dia em que eu olhe as redes sociais e não tenha ninguém falando sobre a minha narração. Não quero elogios, quero que falem do jogo”.
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Durante a Copa do Mundo do ano passado, a Fox manteve um canal que teve apenas transmissões femininas dos jogos, com três mulheres narrando: Isabelly Morais, Manuela Avena e a própria Renata Silveira. Na época, elas ouviram alguns elogios, mas vieram com eles uma avalanche de críticas – menos relacionadas a questões técnicas da narração e mais direcionadas à “invasão” que elas representavam no território masculino. Mas nos últimos tempos, Renata destaca a quantidade de comentários construtivos que tem recebido.
“O que eu mais gostei mesmo foi um cara que escreveu: ‘o preconceito acaba quando você nem percebe que era uma mulher narrando o jogo’. Esse foi o que mais me tocou. Teve outro que escreveu: ‘a narração dessa menina é tipo aquela música que você não gosta e daqui a pouco está cantando’. Então é legal ver isso, alguns comentários críticos também me fazem melhorar. E tem muita gente que coloca: ‘caraca, uma mulher narrando! Nunca tinha escutado’, e tal”, contou.
“Mas no jogo que narrei do Real Madrid, eu vi muita gente só falando sobre o jogo. E é isso que acho que é o ideal, né. Que se dane que é uma mulher que está narrando, que as pessoas se atentem apenas ao jogo. Mas eu sei que ainda é um caminho longo.”
Experiência
Renata Silveira tem a consciência de que é uma narradora em construção. Ao contrário dos homens que chegam para narrar na TV normalmente já com uma bagagem antiga, de muitos jogos narrados no rádio ou em canais menores, as mulheres ainda têm pouca experiência na área – até porque essa não era uma profissão para elas até bem pouco tempo atrás.
As primeiras narradoras do Brasil surgiram no fim da década de 1960 com Zuleide Ranieri e Claudete Troiano pela Rádio Mulher, mas houve um hiato muito grande depois delas até que fosse dado espaço para outras – isso só aconteceu em 1997, quando Luciana Mariano narrou o Campeonato Pernambucano pela Band. Depois, mais um intervalo de décadas sem continuidade para a narração feminina, até que em 2017, Isabelly Morais passou a narrar na rádio Inconfidência, em Minas Gerais. A partir daí, houve um movimento importante no mercado para incluir mulheres nessa função e surgiram novos nomes, como o da própria Renata Silveira, no Fox Sports.
Antes de participar do processo seletivo “Narra Quem Sabe” visando a Copa do Mundo no ano passado, Renata até havia tido uma outra oportunidade de narrar em 2014, quando participou de um concurso da Rádio Globo e ganhou a chance de narrar uma partida do Mundial no Brasil. Mas foi só isso. Até que em 2018, ela finalmente ganhou sequência, fazendo jogos em todas as rodadas da Copa – incluindo a final – e depois acumulando experiência em torneios internacionais como contratada oficial da Fox para a temporada.
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“Isso (sequência) faz toda a diferença. Era uma coisa que eu tinha receio antes, se eu ia fazer um jogo a cada mes e tal. Mas depois que me falaram que era um por semana fiquei mais tranquila. A gente vai pegando o jeito, para estudar os jogos, pra ter vocabulário nos momentos parados da partida, enfim. Fora que quando você vai fazendo vários jogos do mesmo campeonato, já vai guardando as informações de todos os times”, explicou.
Desde que “reestreou” na Fox em setembro, Renata já narrou jogos do Campeonato Espanhol, do Campeonato Alemão, do Argentino, Copa Sul-Americana e Libertadores – sendo que narrou as finais desses últimos. O jogo entre Boca e River foi o mais especial de todos para ela, que tomou um susto quando viu a escala com seu nome dois dias antes da partida.
“Era sexta-feira, eu estava almoçando no shopping quando recebi o e-mail com a escala me colocando para narrar a final. Larguei o prato, comecei a chorar muito na hora. Eu não acreditava. Aí cancelei tudo o que tinha que fazer pra estudar, porque não tinha muito tempo. No fim, aquele jogo não aconteceu e ganhei mais algumas semanas para me preparar, o que foi bom nesse sentido. Mas foi o jogo mais legal que narrei, por tudo o que estava envolvido nele. Nem a final da Copa foi tão legal”, disse.
Preparação
Falando em preparação, quem vê Renata narrando na TV não tem ideia do estudo e da dedicação que um jogo exige dela. São folhas e mais folhas de estudo, muita pesquisa, dados anotados, jogadas assistidas e muita informação na cabeça para poder fazer uma boa transmissão.
“Eu me atualizo sobre tudo que está acontecendo no campeonato aquele momento aí faço estudo mais aprofundado sobre o técnico, aí estudo um por um dos jogadores, aí vou para o Youtube e assisto todos os últimos jogos daquela equipe”, afirmou.
O primeiro título continental de um clube brasileiro narrado por uma mulher. Essa foi @Re_Silveira89 fazendo história na @FoxSportsBrasil na final da #SulAmericana com a conquista do @atleticopr . Guardem esse momento, será só o primeiro de muitos outros que estão por vir! pic.twitter.com/r50LwfkSEP
— dibradoras (@dibradoras) 17 de dezembro de 2018
Ainda construindo sua “bagagem” na nova profissão, Renata Silveira não se deixa acomodar por um segundo e passa madrugadas estudando jogos, vendo lances, pensando em como melhorar suas transmissões. O controle do timbre da voz e da emoção também são preocupações dela para não gritar “demais” nem “de menos”. Mas o mais importante na visão dela é aproveitar a oportunidade para abrir caminhos a outras mulheres que poderão vir depois dela para multiplicar essa “nova geração de narradoras”.
“Acho que a gente tem que aproveitar as oportunidades com quem está abrindo as portas. Chegamos até aqui pela competência, pelo trabalho. É verdade que é um momento de provação o tempo todo, de mostrar que a gente também é capaz. Minha expectativa é que mais e mais canais abram portas pras mulheres narrarem, comentarem e ocuparem esses espaços”, finalizou.