Se no futebol masculino, o problema do calendário é o excesso de jogos ao longo de uma temporada, no feminino a questão é justamente o contrário: a escassez deles. E, para 2019, a CBF vivia um impasse sobre como acolher a quantidade de times recém-criados para cumprir a resolução da Conmebol, que obriga clubes masculinos a manterem times profissionais e de base entre as mulheres para poderem disputar competições como a Libertadores e a Copa Sul-Americana.
Para disputar uma competição nacional, é preciso conseguir a classificação via campeonatos estaduais. Sendo assim, os times de camisa que viessem do masculino iriam disputar somente um torneio estadual com duração média de 3 meses neste ano para poderem sonhar com uma vaga na série A2 do Campeonato Brasileiro em 2020. A solução encontrada pela CBF, porém, foi acolher essas equipes na segunda divisão nacional já em 2019. Para isso, a entidade inflará a série A2 do Brasileiro, que passará a ter 36 participantes – em vez dos 29 que entravam na disputa até o ano passado.
“As equipes que virão do masculino, algumas delas, terão chance de disputar as competições nacionais já agora em 2019 pela ampliação da Série A2. No ano passado eram 29 equipes disputando a primeira fase na seletiva, agora serão 36 disputando direto, sem seletiva. Será uma forma de aproveitar essas equipes sem prejudicar nenhum dos outros times que está classificado para a série A2 pelos critérios técnicos“, explicou às dibradoras Romeu Castro, supervisor de futebol feminino do departamento de competições da CBF.
Considerando que Flamengo, Corinthians, Santos, Atlético-PR (que fez parceria com o Foz Cataratas), Bahia (parceria com o Lusaca), Chapecoense, Ceará e Grêmio já tinham vagas garantidas em torneios nacionais – ou por já estarem na disputa ou por terem feito parceria com alguma equipe que já estava, serão pelo menos 15 times de camisa atuando nos torneios nacionais de futebol feminino em 2019 (8 que já estavam garantido mais 7 que terão vaga na A2 – elas serão preenchidas de acordo com o ranking do futebol masculino).
Orçamento e profissionalização
O acesso a uma divisão nacional já no primeiro ano da formação dessas novas equipes advindas do futebol masculino é uma forma de oferecer melhores condições para as atletas do futebol feminino e aproveitar o investimento feito pelos times de camisa, segundo o dirigente da CBF.
“As equipes que estão vindo do masculino estão trazendo propostas orçamentárias muito importantes para o futebol feminino. A gente tem que pensar prioritariamente nas atletas”, afirmou.
“Temos pelo menos 14 equipes em 2019 com orçamentos superiores a R$2 milhões/ano, isso é um crescimento de mercado significativo que vai trazer uma melhora nas condições de vida, de salário das jogadoras. Antes, só Santos, Corinthians, Iranduba, conseguiam orçamentos desse calibre”, explicou Castro.
Ainda não há uma definição sobre a fórmula de disputa dessa nova série A2 (considerada a segunda divisão do Brasileiro feminino), mas a ideia é garantir um número mínimo de seis jogos para todas as equipes, segundo o supervisor da CBF. Na Série A1 (primeira divisão), a fórmula continua a mesma, com 16 equipes, quartas-de-final, semifinais e final. Os dois torneios começarão em março e irão até agosto, contando uma parada para a Copa do Mundo feminina entre junho e julho. A ideia é manter esse novo formato nacional por cerca de três anos.
Outro ponto importante dessa nova fase do futebol feminino é que ela possibilitará um maior número de atletas se profissionalizando. Atualmente, são raras as equipes que conseguem manter um time com carteira assinada para as atletas (o que as caracterizaria efetivamente como profissionais) – nem mesmo o Corinthians fazia isso. No entanto, a expectativa da CBF é que esse número se multiplique em 2019.
“Antes da estruturação em série A1 e A2 com maior calendário, nós tínhamos um número de jogadoras profissionais que não chegava a 30 e, num período de 12 meses, esse número saltou para quase 200 jogadoras. Eu me atrevo a dizer que para 2019 vai ter um novo salto de 500 a 600 jogadoras com as suas carteiras profissionais assinadas, com as obrigações trabalhistas, porque o número de contatos que eu estou recebendo dos clubes solicitando informações e apoio nessa transição é muito grande”, explicou Romeu Castro.
Maioria dos times joga menos de 10 jogos no ano
É muito comum ouvir por aí que futebol feminino é “chato” e “desnivelado”. A dificuldade técnica é uma realidade para muitos times no Brasil, mas isso não se deve à falta de capacidade das atletas de jogar, e sim à falta de estrutura para que elas possam evoluir. Para se ter ideia, um diagnóstico da modalidade feito em 2018 mostra que 77% dos times de futebol feminino no Brasil jogaram até 9 jogos apenas no ano todo.
“Em 2018, tivemos muitas equipes jogando pouco, isso não é interessante. Jogar 9 jogos por ano é menos de um por mês. Foi um número muito grande de equipes, até mesmo jogando apenas 5 jogos. Precisamos providenciar para o máximo de equipes pelo menos algo próximo de 20 jogos por ano. Pensando os estaduais, poderia ser por um período mais longo. Muitos campeonatos acontecem em um mês ou dois no máximo – 55% deles são assim. É pouco para o desenvolvimento das meninas jogando bola. O excesso de jogos do masculino é a realidade oposta da que vivemos no feminino”, pontuou Júlio César Resende, analista de desempenho do Santos que trabalhou na seleção feminina em 2017 e foi o autor do estudo que possibilitou uma diagnóstico do futebol feminino no país.
Ele aponta para a importância de um maior investimento das federações nos campeonatos estaduais para fomentar o futebol feminino nas regiões em que ele ainda não é tão desenvolvido. “Para o masculino, o estadual é empecilho, mas para o feminino ele é essencial. Tem campeonato que acontece em três fins de semana, parece que existe só pra dizer que tem. O campeonato Capixaba tem três equipes só e eles conseguiram acabar o ano sem fazer a final do torneio”, pontuou.
Segundo o levantamento feito por Resende, existiam 173 equipes de futebol feminino vinculadas a federações em 2018. Mas não foi possível contar quantas jogadoras estão atuando no país, porque as federações não mantêm os registros dessas atletas. “É muito difícil conseguir esses dados, nem as próprias federações se preocupam com isso”.
O analista destaca a importância de se identificar esse diagnóstico da modalidade para criar um plano de desenvolvimento para ela.
Para Romeu Castro, o problema que o futebol feminino sofre com o calendário é o mesmo que acontece com equipes masculinas de menor estrutura.
“Essa situação do calendário não é só do futebol feminino, equipes que não têm potencial econômico no futebol masculino também nao têm muitos jogos. Tem a questão da estrutura esportiva e econômica do país. Nós vivemos num país continental, então você tem dentro da pirâmide, uma estrutura que tem as competições municipais, estaduais, regionais, e aí as competições nacionais, que são para aquelas equipes melhor estruturadas. A CBF cuida em primeiro lugar das competições nacionais e busca incentivar as federações regionais a promover seus campeonatos, mas isso tem reflexo da cultura, economia e estrutura de cada estado. Não é função da CBF resolver isso, mas sim auxiliar e criar um mercado na área”.
Outro ponto sempre muito deficiente no Brasil é a base do futebol feminino – que praticamente não existe. São raros os clubes que oferecem formação de atletas mulheres – até porque não há categoria para elas disputarem. Somente em 2017 foi criado o primeiro torneio de base do país, quando a FPF organizou o inédito Paulista Sub-17. Agora, em 2019, será a vez da CBF finalmente investir na base com a criação do Brasileiro sub-18 – uma iniciativa também feita para acolher os times de camisa, que agora precisarão também manter equipes de base no feminino para cumprir a resolução da Conmebol. O torneio será disputado entre julho e setembro deste ano com a participação de 24 equipes.