Que “futebol não é coisa para mulher”, todo mundo já sabe – ou, ao menos, toda mulher já ouviu essa frase uma vez na vida. Mas hoje em dia, os argumentos costumam ficar mais na superficialidade dessa máxima. Uns até dizem que “não pode jogar porque é coisa para homem”, o que é basicamente a mesma frase dita de outra maneira. Ou então que elas “vão ficar com a perna roxa, isso não é coisa de mocinha”.
A história nos conta que, a realidade do passado já foi bem pior. Em tempos não tão longínquos, há 50, 60, 80 anos, a “moda” era criar um argumento biológico que justificasse a impossibilidade das mulheres de praticarem futebol. Pois, pasmem, por mais incrível que possa parecer, essas justificativas voltaram em 2018 (quase 2019). Primeiro foi o presidente do colombiano Tolima que chamou o futebol feminino de “terreno fértil para o lesbianismo”. Para melhorar, veio agora o dono do Steaua Bucharest, da Romênia, dizendo que “o futebol feminino é contra a natureza humana”. Poderia ser uma declaração de 1940, mas, sim, ela aconteceu basicamente (e literalmente) ontem.
“Quando questionado o que faria se a Uefa o obrigasse a criar uma equipe feminina, Gigi Becali respondeu: “Eu largaria o futebol. Você não poder fazer coisas que são contra a vontade de Deus. Como uma mulher poderia jogar futebol? Ela não foi feita para isso. Seu corpo não foi feito para jogar futebol. É perigoso. O corpo feminino foi criado para ser belo, para atrair o sexo oposto”.
Chega a ser bizarro ver uma pessoa afirmando coisas como essa nessa altura do campeonato. Mas, sim, aconteceu. Ele ainda prosseguiu: “Nós estamos prejudicando as mulheres permitindo que elas joguem futebol. Elas deveriam jogar handebol, vôlei, basquete, mas não esportes agressivos. Fazer isso (time feminino) seria “se alinhar às ideias do Satã”.
Hoje em dia, ainda bem, declarações como essa soam apenas como risíveis e não são levadas a sério. Mas num tempo em que a medicina ainda era pouquíssimo avançada e os conhecimentos sobre as diferenças biológicas entre homens e mulheres ainda eram pouco conhecida, essas justificativas “científicas” para afastar as mulheres do futebol eram muito comuns (e muito aceitas).
A mais comum delas talvez fosse a do tal “sexo frágil”. Elas não seriam capazes de lidar com um esporte tão violento. E surgiam explicações bastante científicas, vindas até mesmo de médicos que as chancelavam. “(O futebol) é um esporte violento capaz de alterar o equilíbrio endócrino da mulher”, disse Dr. Leite de Castro, ainda em 1940, a um jornal de Curitiba.
Em outros casos, os argumentos eram ainda mais específicos. “As mulheres têm ossos mais frágeis; menor massa muscular; bacia oblíqua; tronco mais longo e por isso menos resistente; centro de gravidade mais baixo, coração menor; menos número de glóbulos vermelhos; respiração menos apropriada a esportes pesados; menor resistência nervosa e de adaptação orgânica”, dizia a publicação da Folha de S. Paulo de 1961.
Tudo já foi uma desculpa para proibir a mulher de jogar futebol. Desde o suposto “sexo frágil”, até os órgãos menores e menos resistentes, passando pela questão da maternidade e terminando com o “problema” da perda de feminilidade.
A discussão chegou tão longe que determinou a criação de um decreto-lei que efetivamente proibiria mulheres de jogar futebol e outros esportes considerados “prejudiciais para o seu corpo”.
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o CND baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, determinava o Decreto-Lei 3.199 do Conselho Nacional de Desportos (CND) em 1941. Ele ficou vigente até 1979.
De lá para cá, muitas coisas evoluíram – outras nem tanto – e ao menos hoje não temos uma proibição oficial para afastar as mulheres do gramado. A medicina também já desmintiu os “argumentos” biológicos e, para quem ainda tinha dúvidas sobre eles, surgiram Martas, Cristianes, Formigas e tantas outras para provar que eles estavam errados. Só que, em um momento em que o futebol feminino vive uma ascensão, recebendo mais incentivo da Fifa e das confederações para crescer, logo surgem os “desesperados” repetindo ideias preconceituosas e ultrapassadas numa tentativa de barrar as mulheres do campo. Foi o que aconteceu com o presidente do Tolima, com o dono do Steaua Bucharest e que acontece com muitos dirigentes brasileiros – que, no entanto, costumam evitar dizer o que pensam em público.
Aproveitamos a ocasião para lembrar toda essa história de luta para que não esqueçamos o que nos trouxe até aqui – e, mais do que isso, para que não nos deixemos levar pelos preconceitos que ainda aparecem no meio do caminho.
Recorrendo a jornais das décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970, a pesquisadora Aira Bonfim encontrou algumas pérolas interessantes dessa época e construiu a timeline abaixo, que tem até mesmo o chamado Rei do Futebol, Pelé, reforçando a ideia de que “futebol não é um esporte para mulheres”.
Veja as frases já ditas para impedir as mulheres de jogar futebol:
“O futebol é impróprio para moças” – O Dia. Curitiba, 26 de Junho de 1940.
“(…) é um esporte violento capaz de alterar o equilíbrio endócrino da mulher” – Dr. Leite de Castro, O Dia Esportivo. Curitiba, 26 de Junho de 1940.
“A mulher esportiva cem por cento, a campeã, além de não ter uma saúde excepcional, a sua plástica muito fica a desejar.” – Dr. Leite de Castro, O Dia Esportivo. Curitiba, 26 de Junho de 1940.
“O futebol feminino, como esporte, é desaconselhável, e como passatempo, perigoso… e nocivo (…)” – Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 12 de Janeiro de 1941.
“(…) as mulheres têm ossos mais frágeis; menor massa muscular; bacia oblíqua; tronco mais longo e por isso menos resistente; centro de gravidade mais baixo, coração menor; menos número de glóbulos vermelhos; respiração menos apropriada a esportes pesados; menor resistência nervosa e de adaptação orgânica.” – Folha de São Paulo, 16 de Julho de 1961.
“Deliberação No 7: às mulheres se permitirá a prática de desportos na forma, modalidade, e condições estabelecidas pelas entidades internacionais dirigentes de cada desporto (…) Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia…” – CND (Conselho Nacional de Desportos) – 1965.
“O Conselho Nacional de Desportos (…) decidiu pedir providências aos governadores dos Estados junto aos seus chefes de Polícia, no sentido de não permitirem, em hipóteses alguma, a realização de jogos de futebol feminino.” – Folha de São Paulo – São Paulo, 04 de Fevereiro de 1965.
“O futebol feminino não poderia ser permitido no clube, uma vez que se trata de esporte muito violento para o sexo frágil” (MULLER, Zeino. Diretor de associação esportiva em Munique). Estado de S. Paulo, 21 de outubro de 1973.
“Mas esse é mesmo o esporte adequado”? – Estado de São Paulo. 16 de novembro de 1975
“E lembram que, nesse caso, seriam melhores jogadoras de futebol as nadadoras da Alemanha Oriental, recordistas mundiais, cuja feminilidade foi várias vezes colocada em dúvida” – Estado de São Paulo. 16 de novembro de 1975
“Pode ser um passatempo, mas não um verdadeiro esporte para mulheres” – Pelé – Folha de São Paulo. São Paulo, 29 de janeiro de 1979.
“A questão principal, entretanto, está na biologia e não no machismo.” João Saldanha – Placar. São Paulo, 14 de janeiro de 1979.