O futebol feminino por muito tempo ficou abandonado no Brasil. Mesmo com uma seleção vitoriosa e com a melhor jogadora do mundo (eleita cinco vezes consecutivas de 2006 a 2010 e pela sexta vez em 2018), o país por muitos anos ignorou a modalidade, sem organizar sequer uma liga nacional para que elas pudessem ter onde jogar.
No entanto, há pouco mais de dois anos chegou um reforço de peso para transformar essa realidade: Aline Pellegrino, ex-capitã da seleção brasileira, assumiu o cargo de coordenadora do departamento de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol (FPF) e, desde então, mudanças significativas têm acontecido.
Se fosse para resumir em algumas linhas, dá para dizer que Aline Pellegrino foi a grande responsável pelo fortalecimento do Campeonato Paulista de futebol feminino, torneio que agora conta com uma estrutura melhor e tem transmissão online de pelo menos um jogo por rodada até a final – as semis e a decisão, inclusive, foram transmitidas na TV, com a ESPN Brasil aproveitando o sinal gerado pela FPF. Além disso, ela criou a primeira competição de base federada do futebol feminino no país, com o Paulista Sub-17 surgindo no ano passado. Para fechar, foi sob sua gestão que também surgiu o Festival Sub-14 de futebol feminino, uma oportunidade de equipes ainda mais jovens disputarem um título estadual.
O que se vê é que Pellegrino tem cumprido à risca o que costumava dizer logo que assumiu o cargo na FPF. “Eu quero que as meninas vejam o futebol feminino como uma possibilidade na vida delas. Que elas possam, ainda nessa idade, olhar para o futebol feminino e perceber que ele tem um peso grande na vida. É aquele momento que você está escolhendo, terminei o colégio, o que eu vou fazer? Vou fazer faculdade, curso técnico? Queremos que o futebol feminino tenha um peso nessa balança”, disse a coordenadora às dibradoras ainda no início do seu trabalho.
Hoje, já é possível dizer que há uma perspectiva bem melhor para as meninas e adolescentes que jogam bola por aí e alimentam o sonho de um dia poderem atuar no profissional.
“É um campeonato que fomenta o futebol para as meninas mais novas e dá minutagem para elas, porque muitas chegavam ao profissional com 15 e 16 anos sem nunca ter jogado, só treinando. Essas meninas têm participação num torneio onde elas perdem, ganham, choram, se machucam, podem criar maturidade para chegar melhores no profissional. Acho que o principal papel da Aline é ela ter criado muito calendário fazendo com que essas meninas possam jogar e fomentar o futebol feminino. Só vejo crescimento. Hoje uma menina de 13 anos sabe que tem clube e pode disputar um campeonato federado”, observou Ana Lorena Marche, coordenadora-geral de futebol feminino na Ferroviária.
A importância de Pellegrino no futebol feminino ultrapassa os limites do território brasileiro e já chega à cúpula mais alta da própria Fifa. A ex-atleta tem trabalhado muito perto de algumas das principais lideranças da Conmebol e também da principal entidade do futebol mundial pensando em formas para desenvolver a modalidade. No mês passado, Pellegrino conheceu Fatma Samoura, secretária-geral da Fifa, na Copa do Mundo de futebol feminino sub-17, onde esteve para promover a competição. A ex-capitã da seleção ainda esteve nos gramados do Centenário ao lado de Diego Forlán, ídolo uruguaio, para abrir o torneio. E, para fechar com chave de ouro, Pellegrino ainda pode carregar a taça das campeãs.
Além disso, há duas semanas Aline Pellegrino também foi chamada para estar em Paris acompanhando o sorteio da Copa do Mundo de futebol feminino de 2019. Ela foi uma das presenças ilustres ao lado do chamado time de “lendas” da Fifa na modalidade.
“Acho que ela tem desempenhado um papel muito positivo nos bastidores, muita competência, ela se prepara para isso. Vejo a participação da Aline como extremamente positiva. Já tão vitoriosa como foi a participação dentro de campo. Ela tem um reconhecimento do país, mas também internacionalmente, ela tem participado dos eventos Fifa como uma das jogadoras reconhecidas, então ela vai crescendo cada vez mais”, afirmou Romeu Castro, Supervisor de Futebol Feminino da CBF.
Tudo isso em uma questão de 10 dias, uma maratona que lembrou seus tempos de jogadora de futebol viajando de um lado para o outro. No sábado, dia 1º de dezembro, estava no Uruguai para a final da Copa Sub-17. No dia 2 de dezembro estava em São Paulo para a decisão do Paulista Sub-17. Dia 3, esteve na sede da Federação Paulista comandando o segundo Seminário de Futebol Feminino. Dia 6 já estava no aeroporto novamente a caminho de Paris para o sorteio do Mundial. Uma rotina pesada que mostra o quanto Aline Pellegrino se importa com a modalidade e trabalha em prol dela.
“A presença da Aline Pellegrino na Federação Paulista tem sido determinante para o desenvolvimento e momento atual da modalidade em São Paulo. Alguém que é apaixonada, dedicada, competente, um leque grande de conhecimento da modalidade e extremamente cuidadosa com todos envolvidos. Em pouco tempo fez coisas que pareciam ser impossíveis”, destacou Juliana Cabral, capitã da medalha de prata da seleção brasileira na Olimpíada de 2004.
Fazendo ‘o impossível’
Uma das principais reivindicações do futebol feminino é por mais visibilidade aos torneios, que raramente têm a chance de serem exibidos na TV. Percebendo essa dificuldade, Pellegrino não se intimidou e buscou uma alternativa para garantir transmissões da competição – assim, 18 partidas foram transmitidas pela internet nesta temporada, e a geração das imagens era tão boa, que a própria televisão buscou a FPF para exibir os jogos finais do torneio.
“A gente fez o caminho contrário. Geralmente, no futebol masculino, a TV vem e compra os direitos daquele campeonato e depois busca patrocinador. A gente foi na Lei de Incentivo ao Esporte, conseguimos verba para bancar uma transmissão que é tão legal a ponto de a TV vir nos procurar para dizer: eu tenho uma grade, quero transmitir. Então acho que isso prova que dá para fazer, a gente não precisa usar o modelo do futebol masculino nesse momento que a modalidade ainda está se desenvolvendo, e ficar esperando alguém vir. A gente conseguiu fazer o ciclo inverso e ter um bom resultado”, disse Aline Pellegrino às dibradoras em outubro.
Além da novidade com as transmissões, a ex-atleta inovou também com a premiação às melhores jogadoras do Campeonato Paulista. Antigamente, somente os homens tinham eleição de melhores para cada posição e recebiam os troféus por isso. Desde o ano passado, isso acontece também com as jogadoras – neste ano a festa foi no Museu do Futebol celebrando a conquista da chamada “seleção do campeonato”. Uma valorização que a modalidade precisava há tempos.
O Campeonato Paulista ainda encerrou essa temporada com um novo recorde de público, com a Vila Belmiro lotada para a final entre Santos e Corinthians (13.867 pessoas estiveram no estádio para o jogo, o maior público do Santos na Baixada Santista em 2018).
Mas para além das conquistas no profissional, Aline Pellegrino investiu seu tempo principalmente no planejamento de um calendário para a base. Isso era algo inexistente no futebol feminino quando ela chegou ao cargo. Agora, já existem duas categorias com torneios oficiais: o Paulista Sub-17 e o Festival Sub-14. O primeiro teve 17 times, começou com duração de dois meses em 2017 e agora já ocupa quatro meses do ano. O segundo foi ao longo de uma semana em Araraquara, reunindo 230 atletas de 13 equipes diferentes.
“A chegada da Aline à FPF representou uma nova etapa para o futebol feminino. O Campeonato Paulista já era uma competição consolidada no calendário, mas a presença da Aline à frente do departamento feminino aproximou a federação de clubes e jogadoras. As experiências dela como atleta, treinadora e dirigente foram fundamentais para fazer esta interlocução com os times, compreendendo melhor os anseios da modalidade e colaborando com a sua evolução”, pontuou o presidente da FPF, Reinaldo Carneiro, que ainda destacou a importância de Pellegrino na organização do Seminário de Futebol Feminino, criado para reunir clubes e especialistas e debater melhorias para o desenvolvimento da modalidade.
Tudo isso mostra que é possível fazer muito pelo futebol feminino, basta querer. E, principalmente, basta abrir espaço para quem realmente gosta da modalidade e quer elevar o patamar dela. “Acho que é importante que os clubes abram os olhos e percebam a importância de dar espaço para essas mulheres, essas ex-jogadoras excepcionais. Precisa criar um plano de carreira para elas dentro do futebol”, finalizou Romeu Castro, supervisor da CBF.