Durante três dias (26, 27 e 28 de outubro), o São Paulo Futebol Clube realizou a primeira seletiva para montar o elenco do futebol feminino. O clube do Morumbi retoma a tradição de investir na modalidade e um dos grandes motivos para isso vem da exigência imposta pela Conmebol, que espera que em 2019, as mulheres também possam ter clubes para defender em torneios femininos. O não cumprimento da regra exclui a participação dos times masculinos em competições internacionais, como a Libertadores da América.
Segundo o levantamento feito pela comissão técnica, 470 meninas passaram pela peneira realizada na sede social do São Paulo. “Foi uma experiência muito bacana em dar oportunidade para as meninas que não têm uma situação favorável no cenário nacional do futebol feminino. Foi bom para que elas pudessem mostrar o talento aqui e, quem sabe, serem aproveitadas”, afirmou Lucas Piccinato, o treinador da futura equipe profissional do Tricolor, em entrevista às dibradoras.
Como o São Paulo começa a montar a equipe do zero, algumas características foram observadas com mais atenção nas atletas: talento, intensidade e força física.”Tentamos ser o mais justo possível. O nível competitivo que vamos enfrentar é muito grande, como o Santos e o Corinthians. E são equipes que o São Paulo será comparado o tempo inteiro. Então, observamos primeiro a parte técnica: o domínio, o passe, a condução e como a menina lida com a bola. Mas também é importante observar a parte física. A parte tática também conta, perceber como a garota se movimenta e se relaciona com outras atletas”, contou Lucas.
A seletiva é apenas uma parte da montagem do elenco são-paulino e é a menor delas. As atletas da base (sub-17) também serão aproveitadas para a equipe principal e o clube espera contratar jogadoras com mais experiência para fortalecer o time.
As selecionadas na peneira, avançarão para uma segunda fase, onde o clube vai oferecer um treinamento de uma semana para uma observação mais precisa. “Cerca de 22 meninas deverão participar dessa segunda etapa e, depois disso, devemos selecionar cerca de 10”, revelou o treinador que imagina ter um elenco composto por 25 atletas.
Formado em Educação Física pela USP, Lucas sempre trabalhou com futebol feminino. Estava no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) desde 2010, onde atuou nas categorias sub-13 até o profissional e, neste ano recebeu o convite do São Paulo para conduzir a equipe feminina. Na época em que iniciou sua trajetória como treinador no COTP, trabalhou com Artur Elias, o atual treinador do Corinthians, que era quem comandava a modalidade por lá.
Thiago Viana (atual treinador da equipe sub-17 do São Paulo) e Jonas Urias (treinador da equipe feminina Sport Recife) também vieram da mesma escola. “A formação de atletas e de profissionais do Centro Olímpico é muito grande. Foi uma bagagem enorme para todos nós”, afirmou.
Com o time montado para 2019, o São Paulo disputará somente o Campeonato Paulista no ano que vem, já que, pelas regras da CBF, precisará conquistar o acesso à disputa dos campeonatos nacionais. O Departamento de Competições da entidade máxima do futebol brasileiro está avaliando uma maneira de ampliar as vagas nos torneios do país (Brasileiro Série A1 e Série A2) para conseguir abrigar o novo volume de clubes que virá em cumprimento das regras da Conmebol e da própria CBF.
Em busca de um sonho
Durante a seletiva, os sonhos e a ansiedade eram visíveis no rosto de cada garota que buscava uma chance de se tornar uma jogadora de futebol. Algumas jogavam desde muito cedo, outras iniciaram um pouco mais tarde. Até mesmo meninas que viveram a experiência de treinar com a seleção brasileira sub-17 estavam ali, se doando em campo em busca uma oportunidade.
É o caso de Poliana Rangério de 18 anos. Ela mora com a mãe em Assis (cidade do interior de São Paulo a cerca de 435 quilômetros da capital) e viajou a noite inteira para participar da seletiva são-paulina na última terça (27/10). Poli joga desde os 7 anos de idade. “Estudava em uma creche onde eu sempre estava jogando bola com os meninos. Minha mãe viu que eu gostava e jogava bem e me colocou numa escolinha de futebol onde fiquei até meus 16 anos treinando”, contou às dibradoras.
A primeira peneira que participou foi para jogar futsal em Marília e ela passou. Quando descobriu que estava acontecendo uma outra seletiva – desta vez organizada para a CBF – no Foz Cataratas (equipe feminina de Foz do Iguaçu), Poliana não pensou duas vezes em ir até lá para tentar uma oportunidade.
“Pedi para minha mãe me levar. A passagem custava R$ 300,00 e minha mãe é diarista. A viagem durou umas sete horas, minha mãe pegou todo o salário dela e foi comigo”, contou Poliana que joga de atacante e marcou três gols nesse dia. Um mês depois, o treinador da sub-17 – na ocasião, Doriva Bueno – ligou para a mãe de Poliana para avisar que ela havia sido aprovada. E foi assim que ela viveu a experiência de treinar com a seleção brasileira em 2017.
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“Eu quero tentar me apresentar na seleção brasileira de novo. Quando eu fui convocada, eu tinha 16 anos e fui convocada na sub-20. Não estava num momento bom, mas o Doriva não desistiu de mim e me indicou para jogar em um clube de Londrina. Mas quando sair uma nova seletiva, quero me apresentar de novo. Quero defender o país”, revelou Poli que estava sozinha participando do teste, foi selecionada e aguarda o anúncio do clube para saber se avançou para a próxima fase.
Carol Cangussu e Luana Reis de Souza, de 21 anos, vivem uma outra realidade. Elas vieram de São Francisco, em Minas Gerais, para São Paulo com Antônio José Ferreira da Silva, o treinador que as acompanha há anos.
Elas defendem o Nova Era, uma equipe de futsal em São Francisco, cidade que está a 590 quilômetros da capital Belo Horizonte. Luana joga de lateral esquerda e Carol como atacante. Naquele dia, só Carol foi selecionada para tentar avançar para a segunda etapa da peneira.
“Eu só jogava futsal, mas fui para Montes Claros (cidade a 164 quilômetros de São Francisco) para trabalhar. Precisava ajudar minha família a pagar o aluguel. Estou neste emprego há três meses, mas arranjei um jeito de vir pra cá. Para realizar meu sonho eu faço qualquer coisa”, contou Carol.
Os três saíram de São Francisco em um ônibus financiado por uma empresa de turismo da cidade e chegaram em São Paulo na terça-feira. Foram 20 horas de viagem e chegaram na capital paulista sem ter onde dormir. Pensavam em passar a noite na rodoviária, mas Carol conseguiu acionar um parente e ele acolheu a sobrinha, Luana e Antônio por uma noite. Para chegar no Morumbi no horário exato da peneira, os três saíram da casa do tio de Carol no dia seguinte, às 4h da manhã.
“Lá na cidade (São Francisco) elas são bastante conhecidas. Tem seis times de futsal feminino, apenas quatro em atividade, e sempre tem gente para ajudar. Só trouxe as duas porque as demais não tinham condições. Pedi que elas conseguissem pelo menos R$ 100,00 cada uma pra gente participar dessa seletiva. Um dinheiro só pra gente não passar fome”, nos contou Antonio, de 40 anos.
O Nova Era existe desde 2013 e Antonio faz o que pode para manter o time ativo. Ele treina cerca de 25 atletas e acompanha a Carol desde os 8 anos de idade. Luana está treinando no time há dois anos. “Eu adoro futebol feminino, sou suspeito pra falar, mas no meu time têm umas 10 meninas talentosas e que tem condições de estar num time profissional”, revelou.
Daniela Alves, ex-jogadora e assistente técnica da seleção sub-20, estava acompanhando a peneira promovida pelo São Paulo. Antonio teve a oportunidade de conversar com ela e contou que a ex-jogadora elogiou o desempenho de Carol no teste. “Eu falei que era minha atleta e a Dani me disse que só pela primeira batida dela bola deu pra perceber que ela tem o talento. A Luana também é uma ótima lateral esquerda, mas a bola não estava chegando nela”, disse.
Antonio conhece a família das duas garotas e as mães depositam muita confiança nele, mesmo sabendo que o sonho das filhas é muito difícil de se concretizar. “Minha mãe me apoia”, disse Luana. Já a mãe de Carol, acha que se dedicar ao futebol é perda de tempo. “Ela quer que eu estude, que tenha um futuro, mas meu sonho é jogar futebol”, contou.
“As meninas me respeitam demais e o mais importante é que as mães me consideram como da família. Eles têm noção da dificuldade e me falam que preferem que eu não desperte esse sonho nelas. Além de ser difícil é custoso. E aí eu respondo que o sonho não é só delas, é meu também”, afirmou Antonio.
Poliana e Carol saberão se avançam para a segunda fase pelo site do São Paulo, no início da semana que vem. Independente do resultado, é certo que as garotas seguirão tentando agarrar uma chance. Não é difícil fazer essa afirmação, a resposta está no olhar de cada uma delas.