Mais do que jogar e acompanhar futebol, as mulheres querem ter a liberdade de soltar sua voz na arquibancada, viajar para incentivar seu time, tocar instrumentos e empunhar a bandeira com suas cores. Elas querem ser parte da festa que esse esporte promove, querem existir sem precisar pedir por respeito, sofrer assédio ou preconceito.
Engana-se quem pensa que o lugar delas não é no estádio, que o futebol é apenas coisa de homem. Esse tipo de discurso não cabe mais nos dias atuais. E há números que comprovam a crescente presença feminina nos estádios, como por exemplo o levantamento feito pelo Esporte Clube Bahia em agosto deste ano. O estudo mostrou que 69% das torcedoras do clube têm vivencia de estádio e ainda assim, 23% delas declararam ter sofrido algum tipo de discriminação nas arquibancadas pelo simples fato de serem mulheres.
Há um ano, no Museu do Futebol em São Paulo, um grande evento aconteceu e reuniu mulheres de arquibancada de todo o país para que elas pudessem compartilhar suas lutas, conquistas e desejos como torcedoras. “O movimento surgiu por meio de um grupo no WhatsApp. De início era uma conversa informal em um bar na Lapa e acabou ganhando uma proporção muito grande de meninas que queriam participar. Acabamos abrindo a ideia nacionalmente e quando vimos já tínhamos o número suficiente de para promover um encontro. O Museu do Futebol nos cedeu o espaço e ali aconteceu o I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada“, contou Kiti Abreu, uma das organizadoras do Movimento Mulheres de Arquibancada.
Segundo Kiti, o objetivo principal do Movimento é unir rivais de uma vida inteira em prol de uma única luta, que é a luta contra o machismo. “As mulheres que fazem parte do grupo se identificam com política do Movimento que é empoderamento e resistência. Nossa atuação dentro das organizadas e dos coletivos é buscar uma arquibancada igualitária. A gente questiona muito. Infelizmente em algumas torcidas organizadas a mulher ainda não pode transportar material (faixas e bandeiras), não pode segurar bandeiras, nem tocar na bateria e quando a gente questiona eles dizem que é trabalho de homem. Mas como assim? Então é esse tipo de paradigma que a gente quer quebrar. Sabemos que é uma luta árdua e lenta, mas que um dia a gente vai conseguir uma arquibancada igualitária”, reforçou.
E assim, elas resistem e começam a criar novas vertentes para ocupar seu lugar de direito na arquibancada. Tem torcida organizada só de mulheres, como a Força Feminina Colorada que representa o Internacional e existem os coletivos femininos dentro das organizadas, como a Força Feminina que faz parte da torcida MOFI do Ceará e a Mulherada Problema, que está dentro da torcida Fanáticos do Atlético Paranaense.
Movimentos como o Toda Poderosa Corinthiana, encabeçado por torcedoras alvinegras, o VerDonnas, recém-criado por palmeirenses e o Movimento Coralinas, formado por torcedoras do Santa Cruz de Recife vão além das arquibancadas e militam fortemente em torno de temas que ainda oprimem as mulheres que gostam de futebol: o preconceito, o machismo e o assédio.
Falamos um pouco com cada uma dessas lideranças sobre o papel que exercem na arquibancada:
Uma torcida organizada de fato comandada apenas por mulheres. Assim é a Força Feminina Colorada que surgiu em 2009 com a necessidade de reunir várias mulheres no estádio.
Reconhecida pelo clube, Ministério Público e demais autoridades, a Força Feminina Colorada conta com 150 mulheres cadastradas na torcida com faixa etária diversa: desde jovens menores de idade até senhoras de 60 anos.
Não se trata apenas de ir ao estádio para torcer durante o jogo. A atuação da torcida vai além dos 90 minutos de partida e das quatro linhas do gramado. “Sempre falamos muito sobre a questão da mulher estar onde quiser, de ter seu espaço e de lutar por ele. Com o passar do tempo, muitas mulheres nos procuram não só para não irem sozinhas ao estádios, mas principalmente pelas discussões que fazemos e por nossa ideologia de arquibancada: empoderamento, representatividade e paz nos estádios”, contou Malu Barbará, de 57 anos, integrante da torcida.
“O jogo, para nós, dura bem mais de noventa minutos: as faixas, por exemplo, são colocadas no estádio pelo menos quatro horas antes do juiz apitar o início da partida. A entrada da banda e dos demais materiais, como bandeirão e bandeirolas, acontecem uma hora antes do jogo, e são revistados pela policia, como os de todas as organizadas.”
Sim, é isso mesmo. Na Força Feminina Colorada as mulheres fazem o papel que muitas vezes são proibidas de realizar dentro de uma organizada com presença masculina: elas cuidam dos materiais de jogo (faixas e bandeiras) e tocam seus instrumentos.
Além dos churrascos antes dos jogos, reuniões na sede, festas em datas comemorativas (Páscoa, Natal, Mês da Mulher, Dia da Criança), a torcida feminina do Inter também conta com canal aberto com o clube. “Nossa ligação com o clube é bem forte: além de ações sociais conjuntas, todas as torcidas e a diretoria se reúnem pelo menos uma vez por mês”, afirmou Malu.
As mulheres também encabeçam um projeto social chamado “Tocando para o Futuro”onde ensinam jovens de escolas públicas a tocarem um instrumento musical. “Uma das nossas meninas, inclusive, já está tocando trompete no estádio com a nossa banda. O projeto tem a duração dos campeonatos, de janeiro a dezembro. Ajudamos esses jovens, além das aulas gratuitas (são bancadas pela torcida), com alimentação nos ensaios e jogos, passagens e roupas”, revelou.
A torcida feminina existe há 13 anos e segundo Naiana Rodrigues, de 32 anos, surgiu com o objetivo de mostrar para todos que mulher também é capaz de frequentar a arquibancada.
O grupo é formado por 14 meninas na faixa de 15 a 35 anos. “Nossa atuação na torcida acontece de muitas formas. Fazemos ações sociais e reuniões duas vezes ao mês. A parte feminina não tem ligação com o clube e não passamos por nenhuma situação de machismo ou assédio entre nós”, contou Naiana.
Segundo ela, a maior barreira enfrentada por muitas mulheres é ter voz ativa dentro da torcida. “Isso até agora não aconteceu com a gente. Nossa maior conquista foi ter o respeito de todos ali dentro”, afirmou a torcedora que tem ao seu lado na arquibancada a sua filha, de 14 anos.
Mulherada Problema (grupo de mulheres que fazem parte da organizada “Os Fanáticos” do Atlético Paranaense)
O grupo Mulherada Problema começou a se movimentar pelo Whatsapp para promover eventos entre as mulheres que fazem parte da organizada e incentivar ações e eventos dentro da sede. “Cerca de 30 mulheres fazem parte do grupo. Temos também algumas apoiadoras que aos poucos vão chegando. A faixa etária é bem diversa, temos meninas de 18 anos, mulheres de 40 anos, passando por 21, 30, 36 e por aí vai”, contou Elise de Oliveira, de 34 anos.
“Fazemos várias coisas juntas. Nos organizamos para churrascos, festas, promovemos de eventos entre nós mesmas e também organizamos e participamos de eventos dentro de nossa torcida organizada, como Dia das Crianças, Festa Junina, Aniversário da Torcida e etc…”, disse.
Elise sabe da importância de se posicionar diante de uma situação machista, assédio, racismo ou violência. O tema é pauta entre as meninas durante as reuniões, antes dos jogos ou em alguma festa. “Todas as meninas que participam do grupo tem uma ideia bem forte e firme de seus direitos e deveres e elas só querem ter a liberdade de ser quem são e fazer o que gostam”, contou.
Torcedoras do Furacão e a própria Elise já passaram por repressões e assédio no estádio. “A gente assiste o jogo juntas e aí, se cantamos um pouco mais agudo ou xingamos um jogador, já perguntam ‘o que você tá dando pitaco no jogo? você deveria estar no fogão’. Chega até ser maçante.”
“Hoje, as meninas do nosso grupo vão bastante em estádio e viajam muito para ver jogos, então os torcedores já nos conhecem. A aceitação fica mais fácil, mas ainda existem homens que assediam e nos reprimem pelo fato de sermos mulheres”, completou.
Movimento Coralinas (coletivo de torcedoras do Santa Cruz)
Nasceu em 2016 porque algumas torcedoras do Santa Cruz que já frequentavam as arquibancadas, individualmente ou como participantes de torcidas organizadas, sentiam a necessidade de se organizar para debater pautas importantes para as mulheres.
“A ideia era discutir a presença feminina dentro do Arruda enquanto torcedora, mas com o tempo o trabalho acabou sendo ampliado e promovemos discussões para além da arquibancada, abrangendo a mulher no jornalismo esportivo, na diretoria, o futebol feminino, arbitragem, mulher na política, produtos e representatividade, assim como trabalhos com mulheres de outros times”, contou Maiara Melo, uma das integrantes do coletivo.
O grupo é encabeçado por seis mulheres que levam as pautas para a discussão com cerca de outras 70 torcedoras. “Diariamente acontecem debates dos mais variados assuntos: sobre a nossa vivência enquanto torcedoras, sobre o nosso time, sobre política, entre outros. Também temos uma pelada que acontece semanalmente no society do Arruda, onde aproximamos as mulheres do futebol para além da arquibancada. Também participamos de grupos de torcidas antifas aqui de Pernambuco, debatendo a política a partir da perspectiva do futebol. Em datas comemorativas, nós promovemos ações maiores”, contou Maiara.
Debatendo temas e atuando na organização de campanhas, o coletivo comemora vitórias significativas para as torcedoras que frequentam a arquibancada. “Já obtivemos conquistas importantes, como a fiscalização nos banheiros femininos (porque os homens utilizavam o banheiro). Também temos o nosso projeto da ‘caixinha colaborativa’, onde a gente deixa uma caixinha no banheiro e juntas alimentamos com papel higiênico e absorvente. Também conseguimos que os padrões do Santa fossem lançados também na versão feminina, porque as mulheres não eram contempladas. Em 2017 saiu a primeira camisa de goleiro na versão feminina na história do clube, graças a esse esforço coletivo, com muita briga nas redes sociais (nossos comentários eram excluídos das páginas do Santa Cruz), com muita cobrança e, claro, diálogo. Tentamos fazer esse mesmo trabalho com as torcidas. Algumas baniram gritos machistas que eram comuns na arquibancada. Nem sempre conseguimos, mas entendemos que faz parte de um processo que leva tempo e muita paciência”, contou.
Situações de machismo, assédio e violência, infelizmente acontecem, mas juntas elas combatem. “É triste demais ver as inúmeras barreiras que são impostas para as mulheres em um exercício de cidadania que é tão natural ao homem. Tudo isso é o que sustenta essa violência que sofremos dentro dos estádios, dos xingamentos às agressões.”
E as vitórias, graças à união do movimento, também são comemoradas. “Com certeza a maior delas foi trazermos cada vez mais mulheres para dentro do Arruda. Mulheres que não tinham companhia, tinham medo ou simplesmente não tinha o incentivo de estar ali. Quando conseguimos juntar 10, 15 mulheres em um jogo, o sentimento é de extrema felicidade por estarmos onde devemos estar: acompanhando o Santa Cruz e vivendo a nossa paixão pelo futebol”, conclui Maiara.
Movimento Toda Poderosa Corinthiana (coletivo feminino da torcida do Corinthians)
O Movimento se organiza em ações pontuais e de conscientização contra o machismo no futebol a partir da internet e em encontros presenciais. “Abordamos questões não só sobre o futebol nacional e elaboramos formas de colocar as mulheres envolvidas com o esporte, sejam torcedores, atletas ou dirigentes em evidência”, afirmou o coletivo.
A inciativa surgiu da vontade de um grupo de torcedoras em mudar questões bastante incômodas no futebol, como a falta da presença feminina nos clubes, nos programas de sócio torcedor e, principalmente, a falta de registros das mulheres na história do esporte do país.
O Movimento se envolve em diversas causas, uma das mais emblemáticas foi a luta, apoiada por outros coletivos e torcedores, para que a Nike não suspendesse a fabricação do modelo feminino da camisa nº2 em 2017. Em um post no Twitter, a fornecedora do clube informou que não ia mais oferecer o produto por falta de demanda, pouco tempo depois, a camisa passou a ser oferecida. O MTPC também protestou ativamente contra a contratação do jogador Juninho, acusado de violência contra sua ex-namorada (falamos sobre o assunto aqui).
“Como a internet é um território hostil, a maior resistência aparece por lá. Em alguns momentos, recebemos comentários de homens dizendo que estamos ‘estragando o futebol deles’. Claramente, não queremos tomar o lugar de ninguém, queremos apenas que o estádio, torcidas, clubes e federações sejam mais inclusivos e abram oportunidades para mulheres assim como é feito com homens”, afirmou o Movimento.
VerDonnas (coletivo feminino da torcida do Palmeiras)
O coletivo surgiu logo após o episódio de agressão sofrido por uma torcedora palmeirense dentro do metrô, hostilizada por torcedores do Corinthians (falamos sobre o assunto aqui). Além disso, Amanda Honel Cardoso, de 21 anos, havia postado em seu twitter que faltava um movimento feminino na torcida do Palmeiras. A resposta foi imediata e Amanda – ao lado de outras 10 torcedoras – criaram o VerDonnas em setembro deste ano.
“Por sermos um movimento novo, nossas ações ainda não são tão grandes, pois queremos fazer as coisas corretamente para que ele dure e fique de herança para a nossa torcida. Hoje nossas maiores ações são o ponto de encontro em um determinado metro para irmos juntas até o estádio para quem pode, além de encontrar tanto dentro quanto fora do estádio. A criação do grupo do WhatsApp foi justamente para que as mulheres pudessem conhecer outras palmeirenses que vão no mesmo setor no jogo ou, até mesmo, que são da mesma cidade para que possam ver juntas”, afirmou Amanda.
Os relatos recebidos também foram importantes para que elas pudessem conhecer histórias de torcedoras que não viviam plenamente a arquibancada por algumas imposições. “Recebemos um relato que nos emocionou e motivou ainda mais a continuar. Uma mulher foi casada durante alguns anos e o marido não a deixava ir ao estádio. Ela se separou e com nosso movimento encontrou coragem para ir ao estádio. Futuramente queremos fazer campanhas e vídeos abordando o assunto do machismo e que não devemos ficarmos caladas”, reforçou Amanda.
Entre as barreiras que as mulheres ainda precisam ultrapassar, Amanda cita também a sexualização feminina em concursos de musa e em desfiles de uniformes dos times. A estrutura dos estádios com poucos banheiros femininos e a enxuta revista policial falhas também são fatores negativos e que acabam afastando o público feminino das arquibancadas.
Próximo Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada
O Movimento já realizou eventos locais em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Encontros nacionais aconteceram em São Paulo (Museu do Futebol) e no Ceará (Assembléia Legislativa do Ceará), ambos em 2017.
“Deixamos as integrantes livres para realizarem encontros regionais em nome do MDA. As pessoas nos procuram, passam a pauta, a documentação e fazem os eventos em suas cidades”, contou Kiti.
“Nossa maior conquista foi a sororidade. A gente realmente conseguiu deixar toda a rivalidade de lado e se unir numa luta só. Percebemos que a dificuldade que uma passa, a outra também passa. Só muda o time e a torcida. Então, essa sororidade e empatia que as meninas demonstram – pela história, pela trajetória, pela caminhada, por tudo que a outra vive – é o que realmente marcou o MDA”, reforça.
O Movimento tem a intenção de realizar um novo encontro nacional em 2019, provavelmente entre junho e agosto, em local a definir.