Ainda não tive filhos, então nunca parei para pensar sobre como explicar para alguém o que é o futebol. Um gramado verde (às vezes nem tanto), com 11 jogadores para cada lado, um juiz vestido de preto (às vezes de laranja, às vezes de amarelo, às vezes de azul), uma bola correndo para lá e para cá, e o tão buscado gol ao final da última linha. Mas futebol pode ser bem mais simples que isso. Pode ser um grito “cantado” em uníssono, um “uuuuuhhhhh” que arrepia até o último pelo do corpo, e até a vibração extravasada de gooooool. E é aí que você percebe que, no fundo, futebol não precisa ser visto – ele precisa ser sentido.
Foi assim que Sílvia Grecco apresentou o futebol para o seu filho, Nickollas. O menino tem 11 anos e é deficiente visual, mas vai a todos os jogos do Palmeiras com a mãe. Ela narra cada lance para o garoto, que sente a emoção de cada jogada. A vibração da torcida faz com que ele saiba quando o Palmeiras está atacando. E o silêncio é o momento mais temido – porque significa que é o adversário quem fez o gol. Fanática pelo clube alviverde, Silvia viu em Nickollas a chance de ter um parceiro de estádio. E agora os dois são inseparáveis quando o assunto é futebol.
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“Sempre quis um parceiro para ir aos jogos. Meu ex-marido era corintiano, minha filha virou são-paulina. E aí quando eu adotei Nickollas, pensei: esse, eu não posso perder”, contou ela às dibradoras.
Silvia “redescobriu” o futebol ao apresentá-lo ao filho, já que precisou buscar referências para explicar a ele um jogo que não poderia ser visto. E entendeu nesse processo que a visão é só um detalhe nesse esporte – é possível explicar a bola, as quatro linhas, as regras, o impedimento. Só não é passível de explicação a emoção que só um gol desperta. E quem disse que Nickollas precisa dessa aula? Isso, ele parece já saber de cor (como na origem da palavra mesmo, de coração”).
“Eu vejo muito as pessoas falando que nao é só futebol. E não é mesmo. A gente tem aquela torcida que encanta, tem a emoção. Ali dentro é um clima tão contagiante, ali ele socializa, as pessoas juntas choram, vibram, se abraçam. Com Nickollas não é diferente”, descreveu a mãe, que virou narradora oficial das partidas para o menino.
Ela mesma começou sua paixão pelo futebol inspirara nas narrações do radio, que ouvia com o pai. A emoção transmitida ali fez com que um elo fosse criado para sempre. E ela sempre quis transmitir isso a alguém.
“Minha filha era são-paulina e, quando Nickollas era pequeno, a primeira coisa que o futebol despertou nele foi um encantamento pelo Neymar no Santos. Ele ouvia as narrações “gooool do Neymaaaaar” e isso mexia com ele. Aí já pensei: pronto, vou ter todos os clássicos paulistas aqui nessa casa”, disse, rindo, pensando no ex-marido, que é corintiano, e na filha, que torce pelo São Paulo – Nickollas seria o santista e ela seria a palmeirense.
Foi aí que elaborou um tática para convencê-lo: Neymar, afinal, tinha sido palmeirense na infância.
“Falei pra ele que o Neymar era palmeirense e é verdade. Ele sempre falou disso, tem foto vestindo a camisa do Palmeiras. Aí isso ajudou o Nickollas a vir para o meu lado”, contou.
A referência do menino quando o assunto é futebol sempre foi a mãe. Ao contrário de muitos meninos, que são incentivador por uma figura masculina no campo, Nickollas sempre viu em Silvia sua companheira de estádio, de Palmeiras, de paixão.
“Quando acontece pela televisão, eu explico passo a passo. Eu já desenhei com a mãozinha para ele saber como é o campo. Aí no estádio, quando entram os jogadores, eu falo: Palmeiras do lado direito, Corinthians do esquerdo. Pego a mão dele e aponto para o canto onde está cada goleiro. Vou falando do jogo, com emoção palmeirense, falo das coisas boas do Palmeiras, xingo o adversário também, afinal a mãe também xinga o juiz né”, brinca Silvia.
O mais bonito dessa relação é como o futebol conectou os dois da maneira mais pura. Não há domingo que o menino não pergunte se tem jogo ou quando eles irão ao estádio de novo. Daqui para sempre, a mãe será sempre sua melhor companheira de Palmeiras.
“É muito bom. Eu me realizo de verdade. Ele é muito parceiro, ele gosta, quer ir pro jogo, insiste para gente ir. Tem que acabar com essa história de mulher no estádio, todo mundo pode gostar. As pessoas com deficiência também. Qualquer um que vai ao estádio tem as mesmas sensações, você torce, sofre, vibra. Lembro até hoje a primeira vez que fui a um jogo, com 16 anos de idade. Isso marca muito. Acho que é assim com ele também”, finalizou a mãe.
Coincidentemente, depois da minha conversa com a Silvia, fui ao Maracanã para trabalhar no jogo entre Flamengo e Corinthians pela semifinal da Copa do Brasil. Do gramado, me permiti fazer uma experiência: no início do jogo, fechei os olhos e fiquei por uns 15 segundos somente acompanhando a partida pelos sons, tentando adivinhar o que estava acontecendo. Eram 53 mil pessoas ali, a imensa maioria flamenguista, e era muito fácil perceber a empolgação crescendo, o que mostrava que a bola estava na área corintiana. Aí vinha o suspiro, aquele “uuuuhhh” tradicional do quase-gol, seguido por um canto mais forte ecoando para empurrar o time da casa para a vitória.
Em 15 segundos, percebi que futebol é muito mais o que você sente, do que o que você vê. Os olhos são só um detalhe, o que faz dele o melhor esporte do mundo é mesmo o coração.