Passamos a vida inteira ouvindo que “futebol não é coisa para menina”. Mas quem chegasse desavisado nesta escola de São Paulo no último fim de semana, logo iria se questionar se essa máxima realmente existe ou faz algum sentido. Eram dezenas delas de todas as idades espalhadas por quadras de futsal e society, jogando com a bola nos pés e o sorriso no rosto. Nenhum menino no meio. Estavam ali somente meninas, somente mulheres.
Essa foi a quarta edição do Soccer Camp “Donas da Rua”, uma clínica de futebol promovida exclusivamente para meninas de 5 a 14 anos. O evento existe desde 2015 e já está na quarta edição, a mais “lotada” de todas as anteriores – as 65 vagas disponíveis foram preenchidas muito rápido e muita gente acabou ficando de fora ainda com vontade de participar (somadas à lista de espera, elas seriam 80). A demanda por um espaço onde meninas possam se encontrar para jogar bola é crescente e ali, ao menos por um fim de semana, elas conseguem sentir que futebol não precisa ter gênero.
“Essas meninas, quando estão fora daqui, vivem num universo de: ‘eu sou a única’. ‘Só eu jogo, só eu me enfio no meio dos meninos e todo mundo acha isso estranho’. Mas aqui elas sentem que podem fazer isso, que tem outras que fazem. E saem daqui com uma outra sensação de: ‘eu tenho um grupo também que eu pertenço, não estou sozinha nessa’”, explicou Júlia Vergueiro, responsável pela organização do Soccer Camp e presidente do Pelado Real, um clube de futebol só para mulheres em São Paulo.
A clínica dura três dias – começa com a apresentação do evento em uma conversa com a embaixadora daquela edição, que é sempre uma jogadora de futebol, como a ex-capitã da seleção brasileira Aline Pellegrino, a atacante e maior artilheira da Olimpíada, Cristiane e, neste ano, a rainha das embaixadinhas, Milene Domingues.
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O interessante é que as meninas chegam, na maioria das vezes, sem saber a história da jogadora, porque nunca ouviram falar dela. E no bate-papo, ficam deslumbradas com o que ouvem – a admiração é instantânea, porque aquelas atletas são o reflexo do futuro que um dia essas meninas gostariam de ter.
Nos dias seguintes, o papo é com a bola no pé, e as meninas são divididas em 3 grupos: o de 5 a 7 anos, o de 8 e 9, e o de 10 a 14. Em todos eles, há duas técnicas responsáveis pelas atividades – sempre mulheres.
“A gente prioriza que elas (treinadoras) sejam sempre mulheres, porque a identificação que elas criam com as meninas é imediata pelo fato de já terem passado pelo que elas estão passando. Isso também é muito importante”, disse Júlia.
Mais do que técnica, diversão
Entre as meninas menores, Mila e Isabela chegaram para o camp empolgadas para jogar. Elas têm apenas 5 anos de idade e começaram a jogar futebol há pouco tempo, incentivadas pelo pai e pela febre da Copa do Mundo. Estão apenas começando, mas ali já fizeram exercícios de noção de espaço e posicionamento na quadra, domínio e toque de bola. Para depois formarem seus times e se divertirem em quadra com as amiguinhas novas.
“Põe a bola no chão. No futsal, a lateral é cobrada com os pés”, ensina uma das treinadoras para uma das meninas que estava imitando o arremesso lateral do futebol de campo na reposição de bola. “Vem você aqui para a área e você fica mais perto dela para receber a bola”, orienta a coach. As garotas de 5 e 6 anos de idade ainda estão aprendendo como devem se posicionar na quadra para terem mais chances de fazer o gol.
Mas não é só técnica que se aprende numa clínica de futebol como essa. O mais importante, aliás, vai muito além de aprender a chutar uma bola ou a dar um drible. O que as meninas mais levam dali é o que de melhor o esporte tem para oferecer.
“A ideia do camp não é só a parte técnica. É usar o futebol para que elas fiquem amigas, se divirtam. Os valores que elas aprendem aqui e essa questão da diversão estão na frente da parte técnica, porque esses dois dias são uma vivência, na verdade. Uma vivência para elas perceberem que podem jogar bola, que há um espaço para fazer isso. É uma oportunidade para gostarem do futebol”, contou Carolina Pohl, coordenadora do Pelado Real e também organizadora do evento.
“Eu vejo muitos casos particulares de meninas que estão inseguras para jogar, que ficavam achando que não eram capazes de fazer aquilo, e aí aqui a gente faz um trabalho externo, as treinadoras conversam, e elas saem daqui diferentes, com essa confiança que não tinham e com mais vontade de jogar. O jeito que elas saem daqui no domingo definitivamente não é o mesmo que entraram na sexta-feira”
No caso da Carol Anjos, de 10 anos, a experiência no camp trouxe até mais do que a confiança para jogar e as amizades. Foi ali que ela descobriu a existência do Centro Olímpico, um clube de futebol de base para meninas – em 2017, ela passou no teste para jogar lá e disputa campeonatos com a equipe.
“Ela joga com os meninos desde os 8 anos. Começou na escola, depois a gente achou uma escolinha para ela jogar, mas sempre com os meninos. Até que ela descobriu aqui o Donas da Rua e veio a primeira vez há dois anos. É impressionante como ela se encontrou. A gente vê no rosto a felicidade dela por poder ter encontrado outras meninas para jogar. Porque ela era sempre a única. E aí aqui ela fez amizade, fica sempre animada para voltar todos os anos”, contou a mãe da Carol, Juliana Anjos.
Escolinha
Na semana passada, falamos aqui sobre as dificuldades que as meninas enfrentam para iniciarem e se desenvolverem no futebol por conta de todo o preconceito que ainda existe e da falta de espaços onde elas se sintam confortáveis para jogar.
Identificando esse problema (até por tê-lo vivido no passado), as organizadoras do Soccer Camp decidiram ampliar o trabalho com as meninas abrindo uma escolinha exclusivamente para elas. Tudo começou em 2016 com apenas 4 ou 5 matriculadas. Hoje, dois anos depois, já são 50, divididas em turmas sub-7, sub-9 e sub-13.
“Nós começamos com uma turma infantil, tínhamos meninas de 8 anos misturadas com meninas de 16. Devia ter umas 4 ou 5 meninas nos primeiros treinos. Aí foi crescendo e conseguimos dividir por idade. O sub-7 foi o que mais cresceu nos últimos tempos. É uma procura crescente, porque as meninas estão começando a querer jogar um pouco mais cedo e é muito difícil encontrar escolinha, mesmo mista, para meninas de 5 ou 6 anos de idade”, pontuou Júlia.
Foi exatamente essa a dificuldade que Flávia Ghisi Nielsen teve quando quis colocar as gêmeas Mila e Isabela na escolinha. Com apenas 5 anos de idade, Mila foi fazer um teste em uma que tinha 30 meninos e só ela de menina.
“A gente achou complicado deixá-la ali, porque os meninos são mais agressivos, ninguém passava a bola para ela…então a gente começou a procurar um lugar só para meninas. Achei até que não iria encontrar, mas aí uma amiga me falou desse lugar”, contou.
Agora, as duas se misturam a tantas outras da turma que têm a mesma paixão: jogar bola. Com a sorte de terem começado bem antes do que a maioria das meninas (só 29% delas começam no esporte aos 6 anos de idade), Mila e Isa já estão aprendendo desde cedo que o lugar delas pode ser onde escolherem – inclusive no campo.
Futebol, afinal, não é coisa de menino, nem de menina – é para quem quiser jogar.
SERVIÇO:
Se você conhece alguma menina que tem vontade de jogar, aqui vão as informações da escolinha:
Pelado Real Futebol Clube
Treinos de futebol exclusivos para meninas
05 a 07 anos: sábado, 9h30 as 10h45
08 a 09 anos: sábado, 11h as 12h30
10 a 13 anos: sábado, 9h30 às 11h
Local: Barra Funda (São Paulo)
Inscrição para aula experimental aqui
Soccer Camp “Donas da Rua” – no dia 7 de setembro, acontecerá a primeira edição do evento no Rio de Janeiro. As inscrições estão abertas aqui.