Por Renata Mendonça e Roberta Nina
A participação das mulheres nos estádios de futebol ainda incomoda muita gente, seja aqui no Brasil ou em outros países. A ideia de que o futebol é feito apenas para os homens – apesar de ultrapassada – ainda é muito presente na sociedade.
A mulher que se atreve a jogar, torcer, treinar ou gerir um clube de futebol está sempre sob os olhares duvidosos e machistas daqueles que não aceitam a paixão, o interesse e o conhecimento do esporte por parte delas. E isso, em pleno século XXI não tem mais cabimento.
Ainda assim, há quem siga tentando impedir as mulheres de ocuparem esse universo, que até hoje é visto como “masculino” para muitos. A notícia mais recente vem da Itália, mais precisamente dos torcedores uniformizados da Lazio, os “Irriducibili” que no último sábado (18/8), durante um jogo contra o Napoli, distribuíram folhetos proibindo a presença de mulheres nas primeiras filas da curva Norte do Estádio Olímpico de Roma.
“A curva nord é um lugar sagrado para nós, um ambiente com um código não escrito que deve ser respeitado. Sempre encaramos as primeiras filas como uma trincheira e por isso não admitimos mulheres, esposas ou namoradas”, dizia um trecho do comunicado. De acordo com a “regra” da Irriducibili, as torcedoras que estivessem no estádio deveriam ocupar os lugares a partir da fila 10 para trás.
O jornal italiano Corriere Della Sera classificou o ato como “proibições ridículas e inaceitáveis, imbuídas de sexismo e machismo, colocadas no papel e entregues aos espectadores”. Mas esta não é a primeira vez que a torcida demonstra preconceito e incita a violência de maneira absurda.
No final de 2017, a mesma torcida extremista do time romano da Lazio, encheu o estádio com imagens da garota alemã Anne Frank – morta pelo nazismo – usando a camisa de seu arquirrival, a Roma. Na Itália, infelizmente, é muito comum usar o termo “judeu” para ofender o adversário.
E com os dizeres “Anne Frank incentiva a Roma”, os hooligans da torcida “Irriducibili” (irredutíveis, na tradução para o português) usavam os cartazes para ofender os rivais da capital. Por conta disso, a Federação de Futebol Italiano (FIGC) puniu o clube e o caso foi tratado como ato extremo de fascismo, atingindo não só o esporte, mas também a política de todo o país.
Agora, a mesma entidade abriu investigação que pode punir a Lazio pela nova “regra” dos ultras, que restringe acesso das torcedoras à arquibancada. “Certamente o caso terá consequências disciplinares”, afirmou Michele Uva, diretor da Figc. O time pode acabar tendo que pagar multa ou terá de jogar com os portões fechados caso seja punido pelo ato da torcida.
Vale lembrar que na França, no início de 2017, a torcida do Lyon também fez manifestações machistas na arquibancada ao levantar bandeiras indicando que o lugar dos homens é no estádio, enquanto o das mulheres é na cozinha (saiba mais aqui).
Impedidas de torcer também no Brasil
Situações como essas pelas quais as torcedoras da Lazio passaram no fim de semana não são totalmente inéditas no Brasil. Por aqui, as mulheres também são impedidas de torcerem de maneira integral, especialmente dentro das torcidas organizadas. Quando participamos do 1º Encontro de Mulheres de Arquibancada que aconteceu em São Paulo, em junho de 2017, pudemos ouvir diversos relatos de torcedoras que são impedidas de apoiar o time em algumas circunstâncias.
Tocar o tambor na arquibancada, tremular a bandeira da torcida organizada, viajar para fora de sua cidade para acompanhar os jogos do time são barreiras que elas ainda precisam vencer. O papel feminino dentro das sedes das organizadas se resume, na maioria das vezes, a limpar, cozinhar e organizar eventos beneficentes que arrecadem verbas para ações das torcidas.
São poucas as mulheres que tiveram coragem ou permissão para viajarem em excursão com os membros da torcida organizada para assistir um jogo do time do coração. “Os jogos de guerra” – eles dizem – não são apropriados para a presença feminina, são perigosos e podem acabar em confrontos.
Neste caso, a ideia de “proteger a mulher” é imposta por eles, quando na verdade, a decisão entre ir e vir deve ser tomada pela própria torcedora, maior de idade e totalmente capaz de decidir o que é melhor pra sua vida, certo? Errado. E, assim, elas ficam restritas a papéis coadjuvantes dentro das torcidas.
Qual é o problema em uma mulher tocar o tambor na arquibancada? Qual é a incapacidade que ela tem para balançar uma bandeira com o escudo do time? Como esses simples atos podem ferir o ego masculino? É difícil de entender e mais difícil ainda de mudar essas imposições, mas as torcedoras têm, cada vez mais, exigido seu espaço e lutando por mais autonomia nas arquibancadas.
Impedir as torcedoras de torcer chega a ser até mesmo irônico diante da história do futebol no Brasil. A ideia da palavra “torcida” vem primeiramente do latim “torquere”, que significa torcer. Mas a palavra ganha popularidade no futebol por meio das crônicas esportivas do século XX que destacavam a presença feminina nas arquibancadas, sempre vestidas de maneira formal, com seus chapéus e lenços que eram torcidos no momento de tensão durante a partida.
Foi assim que o gesto das senhoras das arquibancadas se transformou em um verbo que pode ser conjugado por qualquer pessoa que ame um time de futebol ou de qualquer outra modalidade esportiva. Mais de cem anos se passaram e as torcedoras ainda sofrem com sanções absurdas que insistem em afastá-las das arquibancadas.
Ambiente hostil
Como se não bastasse as proibições dentro do estádio, as torcedoras ainda enfrentam um ambiente hostil na ida a um jogo de futebol. Os casos de assédio e até de violência não são raros e o autoritarismo da polícia – que, em sua maior parte, está presente na figura masculina – também tornam a experiência da mulher como torcedora um grande tormento, muitas vezes.
As longas filas e a desorganização instaurada na hora da revista feminina é sentida em todos os estádios do Brasil. São poucas as policiais mulheres que desempenham esta função em dias de jogos, o que dificulta e atrasa a entrada das torcedoras nas arquibancadas. Quando pedem passagem para chegarem até a revista feminina (que, em geral, fica depois da masculina), as torcedoras sentem seus corpos tocados o tempo todo por homens que não respeitam seu espaço. “Seria tão simples separar essa fila para que a gente não precisasse passar por esse constrangimento”, nos disse uma torcedora em um dia de jogo.
Neste final de semana, Maiara Melo, torcedora do Santa Cruz foi brutalmente ofendida e agredida por polícias em meio a uma confusão generalizada no Estádio do Arruda.
Conforme publicou em sua rede social, a torcedora e suas amigas passaram por dificuldades para entrar no estádio e, em meio a uma multidão de torcedores (foram quase 50 mil pessoas ao estádio neste dia), a polícia começou a conter o caos usando a cavalaria e spray de pimenta.
Com uma delas passando mal, Maiara tentou socorre-la e pediu ajuda aos policiais que estavam próximos ao local da revista. Um deles pediu para que ela saísse de lá e diante da negativa da torcedora, um policial começou a gritar, a puxá-la pelo braço e até lhe dar um tapa na cara.
“Eu não sei dizer o que senti na hora, porque foi muita coisa. Fui pra cima e disse que ele estava abusando da autoridade, que ele não estava acima da lei e repeti isso infinitas vezes, porque era só o que eu conseguia fazer enquanto chorava. Ele deu um tapa nos peitos de Bruna, que estava tentando me segurar e me empurrou. E gritou: ‘isso é pra você aprender a respeitar homem, sua puta’, várias vezes”, relata Maiara em seu post.
Neste vídeo é possível ver como aconteceu toda a confusão no acesso dos torcedores ao Estádio do Arruda:
Nesta segunda-feira (20), as torcedoras procuraram a Defensoria Pública e devem, dentro em breve, prestar queixa na Delegacia da Mulher, além de mover uma representação no Ministério Público contra a PM.
Maiara Melo tem 26 anos, é jornalista e faz parte do Movimento Coralinas, fundado há dois anos com o intuito de lutar por uma maior presença feminina nos estádios. Hoje em dia, existem vários coletivos assim em clubes do país, como o Movimento Toda Poderosa Corinthiana e o GRUPA, do Atlético-MG.
Porque por mais que tentem nos impedir, nosso lema é esse: ocupar e resistir. A arquibancada também é nossa – e nosso lugar nela não é a organizada quem vai decidir, somos nós mesmas.