Até o fim de março deste ano, os torcedores do Flamengo não tinham muita certeza do que esperar para 2018. Com uma derrota para o Botafogo na semifinal do Campeonato Carioca, o então técnico Paulo César Carpegiani foi demitido juntamente com o diretor de futebol, Rodrigo Caetano, e a torcida já fazia pressão nos jogadores por melhores resultados.
Pelo elenco forte que tinha desde o ano passado, com algumas estrelas como Diego, Éverton Ribeiro, Guerrero e depois da contratação de Henrique Dourado, que veio após ter sido um dos artilheiros do Brasileirão em 2017 pelo Fluminense, não tinha como não apontar o Flamengo como candidato ao título neste ano. No entanto, com as turbulências nos bastidores e a demissão do técnico já no início da temporada, os rumos do time em 2018 ficaram incertos.
Mal sabia o Flamengo que a solução para todas essas incertezas estaria mesmo dentro de casa. Maurício Barbieri fazia parte da comissão técnica do clube e assumiu como interino em 30 de março deste ano. Teve um primeiro mês turbulento, foi muito questionado, mas mantido no cargo e, no fim, acabou mudando a cara do time e levando o Rubro-Negro ao topo da tabela.
Mas o que efetivamente mudou no Flamengo do ano passado para este ano – além do técnico? Os principais titulares continuam ali, mas agora o time parece ter encaixado de vez e está jogando “o fino da bola”. Uma defesa bem postada, um ataque que encanta, a combinação que o torcedor sonhava em ver desde que o clube passou a se recuperar financeiramente e voltou a ser protagonista no mercado, contratando alguns dos principais nomes do futebol brasileiro.
E como foi possível tamanha mudança em tão pouco tempo? É isso que tentamos explicar aqui.
Tudo começa por um goleiro
É difícil ver um time ser campeão sem uma boa segurança embaixo das traves. Essa foi a maior dor de cabeça que o torcedor flamenguista teve em 2017, quando Muralha passou a ser sinônimo de calafrios, e mesmo os reservas dele não corresponderam.
O Flamengo, então, contratou Diego Alves, que não conseguiu ser inscrito na Copa do Brasil no ano passado, mas que neste ano se consolidou como o goleiro seguro que o time precisava.
“O goleiro era algo muito importante no ano passado, e aí o Flamengo contratou Diego Alves, mas a consolidação dele veio neste ano, com atuações mais seguras. Isso trouxe mais confiança ali no setor defensivo”, avaliou a repórter da Rádio Globo CBN, Camila Carelli.
“Diego Alves chegou na metade de 2017 e ainda demorou um pouquinho pra chegar a sua melhor fase. A má fase do Muralha deixava todo flamenguista apreensivo – no mínimo. E isso já desestabilizava porque não importa o que se fizesse do meio pra frente, qualquer contra-ataque podia ser caótico”, apontou a torcedora rubro-negra, Fernanda Fernandes.
Um volante só e muita consciência tática
Consciência tática. Pode parecer apenas um palavrão do futebolês, mas pode-se dizer que esse é o ponto-chave deste Flamengo de Barbieri. Olhando a escalação do time, há uma “inovação” tática que só pode ser compreendida por causa desse conceito.
O Flamengo de 2018 joga apenas com um volante de contenção: Cuellar. De resto, Éverton Ribeiro, Diego, Paquetá, são todos meio-campistas ofensivos, mas que, diante das circunstâncias, entendem que também precisam ter uma função defensiva. Principalmente os dois últimos se revezam segurando um pouco mais no meio-campo, enquanto o outro avança, para que assim o time não fique desprotegido em um eventual contra-ataque. Esse talvez tenha sido o “pulo do gato” de Barbieri, que fez cada jogador entender muito bem suas funções nesse time, o que dá a eles mais liberdade para variarem as posições – é só não esquecer que, assim como precisam atacar, também precisam defender e recompor.
“Eu acho estratégia muito eficiente, porque ele tem outros jogadores que conseguem fazer essa função (de recuar). O Paquetá marca muito bem, apesar de ser um jogador de drible, velocidade. Então ele consegue ter só o Cuellar que tem proteção necessária e consegue começar a armação do jogo do Flamengo”, observou Carelli.
“Funciona especificamente também por conta dos laterais que o Flamengo tem, que não têm muita característica de avançar à linha de fundo. Mas isso vai da organização que ele consegue ter no time, e na cabeça dos jogadores de entender a função que têm no campo. É um time que sabe muito bem atacar, mas na hora de recompor, sabe muito bem também qual é a função de cada um.”
E mesmo sozinho como volante, Cuellar tem sido um dos grandes destaques desse time, um dos líderes de desarmes e o que mais acerta passes.
“Cuellar é uma peça fundamental que ano passado não foi utilizado. Ele consegue armar as jogadas muito bem e protege muito bem a zaga. Isso dá tranquilidade para que os jogadores à frente possam ser mais ofensivos. Acho que a postura do Barbieri é ousada, não é medroso, faz apostas, mudanças interessantes ao longo do jogo sempre colocando o time pra frente, e os conceitos táticos dele foram muito bem assimilados pelo grupo”, analisou Gabriela Moreira, repórter da ESPN que acompanha o dia-a-dia do Flamengo.
Aposta na base
No jogo contra o Botafogo já no retorno da parada da Copa do Mundo e em seguida da derrota para o São Paulo em casa, Barbieri inovou na escalação: colocou o criticado Matheus Savio, de apenas 21 anos, que havia ficado marcado por uma atuação ruim na Libertadores de 2017, quando o Flamengo acabou eliminado na primeira fase. De cara, a torcida rejeitou. Mas nos primeiros minutos de jogo, o garoto provou que a aposta do treinador estava certa. Em 10 minutos, ele fez um golaço e deu assistência para outro.
Contra o Grêmio foi a vez de Lincoln, atacante de 17 anos, brilhar nos últimos segundo de jogo empatando a partida para o Flamengo. Outro que começa a se destacar pela confiança de Barbieri.
Mas a grande chave de suas apostas com relação a jogadores vindos da categoria de base do Flamengo foi o próprio Paquetá, que já era titular no ano passado, mas teve uma mudança tática com o novo treinador.
“O Paquetá foi a mudança que o time teve. Quando o Barbieri muda o posicionamento do Paquetá, coloca ele com uma responsabilidade de meia mas um pouco mais de contenção, mais atrás do Diego, junto ao Cuellar, isso mudou o Flamengo. Foi no jogo contra o Ceará que ele fez essa mudança tática”, pontuou Gabi Moreira, lembrando a vitória por 3 a 0 do time carioca, que havia viajado pressionado pela torcida com direito a ameaças no aeroporto.
“Ele (Barbieri) tem uma coisa que o Flamengo sempre quis, que é apostar na base. Foi ele que botou pra jogar, com confiança. Ele que muda o posicionamento do Paquetá, que era usado pelo Rueda como atacante, o Jean Lucas ele usa muito no meio, como substituto, o próprio Lincoln que fez o gol quarta é aposta do técnico, assim como o Matheus Savio, os dois zagueiros, que foram fundamentais. O Thuler foi muito bem naquele jogo contra o Atlético-MG, era uma zaga de 21 e 19 anos (com Leo Duarte) que aguentaram um Atlético muito ofensivo com Roger Guedes.”
A torcedora Fernanda Fernandes também reconhece o mérito de Barbieri, que conseguiu encaixar um time mesclando jogadores da base com os mais experientes e administrando muito bem o vestiário.
“Ele tem o mérito de conhecer e saber o melhor momento de aproveitar as ‘pratas da casa’, o que tem funcionado. Além disso, acho que ele é responsável por essas mudanças de manter a posse de bola e o fato de os passes terem sido aprimorados. O Flamengo consegue criar mais jogadas, chutar mais a gol, é ofensivo, está bonito de se ver. E é por isso que a torcida se empolga.”
‘A mão do especialista’
Ao contrário da maioria dos treinadores atuais do futebol brasileiro, Barbieri não é ex-jogador (ao menos não profissional). Ele cursou Educação Física e desde então se dedicou aos estudos da parte tática e técnica do futebol. Fez estágio na base do Porto na época que Mourinho comandava o time principal, trabalhou no Audax, depois no Red Bull Brasil, onde fez um de seus grandes trabalhos em 2014 levando o time à série A1 do Paulista e a disputar pela primeira vez o Brasileiro na Série D.
Após uma breve passagem pelo Guarani e outra pelo Deportivo Brasil, veio parar no Flamengo no início desse ano para fazer parte da comissão técnica permanente e, dois meses depois, se viu técnico do time de maior torcida do Brasil. Mas Barbieri não se intimidou e tem mostrado bastante competência – principalmente para fazer os jogadores entenderem sua ideia de jogo.
“Acho que mais do que o trabalho nos treinos, o Barbieri tem um diferencial: ele mexe muito bem nas partidas. Consegue ler muito bem o jogo, o que está acontecendo, e consegue propor soluções, onde tem espaço que não está sendo preenchido, ou recompor melhor a defesa. Acho que 80% do bom momento do Flamengo tem a ver com Barbieri”, avaliou Carelli.
Ainda é cedo para dizer se o Flamengo vai ser campeão ou não – e as especialistas apontam principalmente duas deficiências: os laterais, que não conseguem apoiar muito, e a falta de um atacante mais agudo, com presença de área (Dourado e Guerrero não vivem boa fase) -, mas uma coisa é certa: é um dos (raros) times que tem jogado a essência do futebol brasileiro ofensivo e bonito de ser ver. E a virada de ano com todas as turbulências nos bastidores acabou sendo crucial para a construção dessa equipe.