O futebol feminino está em transformação ao redor do mundo, recebendo mais investimento e estrutura. No entanto, o cenário da modalidade ainda é bem preocupante, até mesmo nos lugares mais desenvolvidos.
Uma pesquisa organizada pelo Sindicato Internacional de atletas do futebol (FIFPro) em parceria com a Universidade de Manchester mostra que metade das jogadoras não recebe qualquer salário para jogar, nem tem contrato formal com seus clubes.
O estudo teve a participação de 3.600 jogadoras que atuam nos mais diversos países de Europa, África, Ásia e Américas. O objetivo, segundo a própria descrição da pesquisa, era “entender as necessidades das jogadoras de futebol e dar voz a elas, que são tão silenciadas”. Os dados foram divulgados no fim do ano passado e evidenciam uma realidade difícil para as mulheres que sonham com uma vida dentro do campo.
De todas as entrevistadas, 49,5% jogam sem receber salários dos seus clubes. Ou seja, metade das jogadoras adultas que atuam nos principais campeonatos de futebol feminino do mundo não recebem absolutamente nada por isso – a não ser eventualmente ajuda de custo e/ou moradia. Um total de 47% não têm qualquer vínculo contratual formal com as equipes por onde atual.
“Só nos três maiores times da liga as jogadoras são realmente valorizadas. Eu treino de quatro a cinco vezes por semana, não tenho salário e minhas despesas com viagens também não são reembolsadas. Tenho um outro emprego para conseguir me sustentar”, declarou uma jogadora britânica que teve a identidade preservada pelos organizadores do estudo.
Sem receber pelos clubes, a saída para muitas jogadoras é manter outro emprego além do futebol para poderem se sustentar. De acordo com a pesquisa, essa é a realidade de pelo menos 30% das atletas, que levam uma dupla jornada de trabalho para seguirem no futebol.
O diagnóstico é preocupante, mas é importante entender que a realidade de hoje já foi bem pior num passado não muito distante. O futebol feminino foi proibido por décadas em diversos países – Brasil, Reino Unido, Alemanha, Holanda, são alguns deles -, e até hoje sofre com muito preconceito, falta de investimento e falta de estrutura.
Uma pesquisa como essa é crucial para entender o que acontece na modalidade e quais são os caminhos para fazê-la evoluir.
“Estamos passando de fase. Antes nós éramos apenas gratas por nos deixarem jogar. Agora nós já percebemos que as coisas podem e devem ser melhores”, afirmou Hedvig Lindahl, goleira sueca que joga no Chelsea hoje.
O Sindicato dos Jogadores também mostrou a realidade salarial das atletas do futebol feminino – entre as que recebem algo para jogar, 60% não ganham mais do que US% 600 (cerca de R$ 2,3 mil). E uma maioria delas também entende que terá de abandonar cedo a carreira no futebol para buscar algo que dê melhores condições de vida.
“A indústria do futebol precisa desenvolver, implementar e melhorar os padrões já existentes de profissionalismo no futebol feminino. É preciso melhorar as condições de trabalho e criar mais empregos formais para as jogadoras”, conclui o estudo.
“O desenvolvimento do futebol feminino reflete mudança culturais da sociedade. A luta por oportunidades iguais já é longa e difícil, e ainda não acabou. Por causa disso, não adianta simplesmente copiar e colar as fórmulas do futebol masculino no futebol feminino que não vai dar certo”.
Para ver o estudo completo, clique aqui.
Resumo dos dados (3,6 mil jogadoras entrevistadas de 33 países diferentes):
– 49,5% das jogadoras não recebem salário de seus clubes
– 47% delas não têm contrato formal
– 30% têm outro emprego além de jogar futebol
– 60% das jogadoras que recebem salário ganham menos de 600 dólares (R$ 2,3 mil)
– 35% das jogadoras não recebe nada para jogar pelas seleções de seus países
Brasil
As jogadoras brasileiras acabaram não participando da pesquisa – o país não atingiu o número mínimo de respostas necessárias -, mas a realidade por aqui também não foge muito disso.
Uma pesquisa feita pelo UOL Esporte no ano passado com as jogadoras de clubes da Série A do Brasileiro feminino mostrou que 3 em cada 4 jogadoras não recebe mais do que dois salários mínimos para jogar (R$ 1,8 mil). O maior salário pago para uma atleta em atividade por aqui é de R$ 5 mil.
(Vale ressaltar também que a realidade de baixos salários também afeta o futebol masculino. Uma pesquisa da CBF divulgada em 2016 mostra que 96% dos jogadores brasileiros ganhavam menos de R$ 5 mil e 80% ganhavam até R$ 1 mil).
“Infelizmente o Brasil não atingiu o número de respostas suficientes pra entrar nos dados da pesquisa, mas acho que não teríamos grandes surpresas de acordo com o que o resultado da pesquisa mostra nos outros países”, disse às dibradoras Aline Pellegrino, ex-capitã da seleção brasileira e coordenadora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol (FPF).
“Um ponto muito importante aqui é destacar a iniciativa de se fazer a pesquisa. Acho que ela não vem pra achar vilão ou mocinho, e sim apresentar qual é o cenário e contexto do futebol das mulheres e que ele tem muitas coisas boas e interessantes, assim como tem muito o que melhorar.”
Pellegrino ressalta a importância da profissionalização dos clubes de futebol feminino no Brasil para garantir a evolução da modalidade. Ter uma carteira assinada, por exemplo, é raridade entre as jogadoras, e assim elas acabam passando a carreira toda na informalidade.
“Acho que esses dados são de uma modalidade que, sem dúvida nenhuma, está iniciando agora o seu desenvolvimento de forma mais estruturada. E me parece muito claro que temos um ponto chave nesse processo que passa pela profissionalização das atletas e todos os agentes envolvidos”, disse a ex-atleta.
“Tenho certeza que quando essa pesquisa for feita novamente vamos ter números melhores do que nessa. A maior prova disso é que no Brasil, por exemplo, se fizéssemos essa pesquisa 5 anos atrás, não teríamos nenhum atleta com carteira assinada. Hoje já temos. Daqui a 5 anos, vamos ter ainda mais.”
Como caminho para mudar essa realidade, Pellegrino destaca a nova regulamentação da Conmebol, que obrigará clubes do futebol masculino que disputarem a Libertadores a terem também uma equipe de futebol feminino. E outro ponto crucial para ela é diagnosticar a realidade da modalidade em cada região do país para poder pensar em ações que a façam evoluir.
“A primeira estratégia de mudança tem sido feita, que é mapear o real cenário sem “achismos”. E a partir do que for apresentado criar ferramentas para mudar. A questão da obrigatoriedade por parte do licenciamento de clubes me parece ser mais uma ferramenta interessante nesse sentido.”
“Uma coisa tenho bem clara que é: quanto mais melhoramos o futebol feminino e dermos visibilidade pra ele, mais perto ficamos dessa profissionalização.”