A Fifa mapeou, pela primeira vez em uma Copa do Mundo, os casos de assédio que aconteceram com repórteres e torcedoras ao longo do torneio. Ao que parece, a entidade ficou “surpresa” com a frequência deles, resumida pela ONG Fare Network em 45 episódios (que definitivamente não retratam a realidade que se viu na Rússia), um número maior do que os casos de racismo registrados.
Diante desse cenário, os dirigentes que comandam o futebol mundial decidiram tomar uma atitude: a de proibir a exibição de imagens de “mulheres bonitas e atraentes” nas transmissões de TV ao longo do Mundial. Quer dizer, de acordo com a Fifa, o “problema” dos assédios frequentes está na beleza delas, e não na falta de respeito deles.
Há tantos absurdos nesta declaração da entidade, que é difícil até saber por onde começar. Primeiramente, o que seriam mulheres “bonitas e atraentes”? Qual é o critério que a Fifa usará para definir se as mulheres mostradas pelas emissoras de TV se encaixam nessa característica?
E como a “não exibição de imagens de mulheres bonitas” poderia contribuir para o fim dos casos de assédio? Porque mesmo não sendo mostradas na TV, elas continuarão existindo na Copa, na arquibancada, na sala de imprensa e em todos os lugares que já ocuparam nesse Mundial. Será que o próximo passo da entidade vai ser pedir para as emissoras “enfeiarem” suas repórteres para que, assim, elas corram menos riscos de sofrerem ataques de torcedores durante o trabalho na cobertura do torneio?
A medida proposta pela Fifa simplesmente reforça a ideia de que a culpa pelo assédio sofrido pelas mulheres está nelas próprias, e não nos homens que as assediam. Vai na mesma linha de ideia de quem defende que “mulheres que usam roupas curtas merecem ser estupradas”, como mostrou essa pesquisa em 2016. Quer dizer, o problema está sempre nelas. São as mulheres que precisam pensar melhor no que vestir ou que precisam “ser escondidas” nas transmissões, e não os homens que precisam aprender a respeitá-las em todos os lugares, com todos os tipos de roupas.
É claro que a sexualização das mulheres na mídia esportiva é um problema que deve ser combatido – e já tem melhorado, inclusive, é preciso ressaltar. As tais “galerias de musas” têm ficado cada vez mais escassas, ainda bem, mas é verdade que essa objetificação da mulher na cobertura esportiva contribui para a cultura do assédio. O tratamento da mulher no futebol apenas como “enfeite”, como o elemento que está lá para tornar o espetáculo mais bonito e só, por muito tempo prevaleceu nos veículos esportivos. Só que elas não estão ali para serem musas, estão ali para torcer, vibrar e fazer parte do Mundial, tanto quanto eles. Por isso, já passou da hora de enxergá-las para além da beleza.
E a Fifa também tem um papel nessa valorização da mulher no futebol (e mais especificamente na Copa do Mundo) e na garantia de um espaço seguro para ela estar ali. Só que a estratégia para isso não passa por qualquer “proibição” de “mulheres bonitas e atraentes” na televisão.
Foto: Reuters
Para combater o assédio, a Fifa precisa passar a vigiá-lo e puni-lo. Precisa deixar claro aos torcedores que essas atitudes não serão mais toleradas. Precisa criar um órgão de atendimento a mulheres vítimas de assédio e violência no maior evento esportivo do mundo para que elas possam denunciar e, acima de tudo, para que elas possam se sentir acolhidas. E precisa principalmente incluir mulheres em seus órgãos diretivos e no grupo que vai pensar esses tipos de ações para combater o problema.
Na coletiva de imprensa em que anunciou o número de casos de assédio registrados, praticamente só havia homens falando. E quem anunciou a medida adotada pela entidade também foi um homem, o chefe do departamento de responsabilidade social da Fifa, Federico Addiechi. Talvez por isso essas decisões soem tão desconectadas da realidade das mulheres.
O problema já foi identificado, e isso é importante. Mas agora é necessário entender as causas dele para combatê-lo da maneira correta – definitivamente, não é a beleza das mulheres que provoca o assédio. O que faz um homem pensar que tem o direito de invadir uma gravação de TV para forçar um beijo em uma repórter? O que faz ele acreditar que pode fazer isso? O que faz um cara passar por uma torcedora no estádio e achar que pode puxá-la à força para beijá-la? Ou tocar seu corpo sem sua permissão? Tudo isso SEMPRE aconteceu e SEMPRE foi tratado como “normal” – por quê?
São essas respostas que a Fifa precisa buscar e é a esses caras que ela deve ensinar como se comportar. Deve passar o recado a eles de que, a partir de agora, atitudes como essas serão devidamente investigadas e punidas. É fácil identificar os torcedores que tentaram beijar as repórteres à força, por exemplo – todos eles foram registrados em vídeo. Por que não confiscar a “Fan ID” (documento de identificação exigido pela Fifa para entrar nos jogos da Copa) deles, proibi-los de entrar no estádio, fazer, enfim, algo que os faça pensar dez vezes antes de tomar uma atitude dessas de novo? A entidade afirma ter feito isso com os casos que foram identificados, mas muitos outros passaram ilesos – um órgão específico para acolher esse tipo de denúncia poderia ser uma saída (e a recorrência dos episódios justificaria facilmente o investimento em algo nesse sentido).
É esse o tipo de medida que as mulheres, torcedoras, jornalistas, fãs de futebol, esperam da Fifa no combate ao assédio. Não é uma questão de beleza, é uma questão de respeito. Deixa ela trabalhar, deixa ela torcer.