Por Roberta Nina e Renata Mendonça (de Moscou)
A Copa do Mundo está terminando com um saldo de 45 casos de assédio a mulheres registrados na Rússia. Isso, claro, oficialmente. Foi o número divulgado pela ONG britânica Fare Network, que combate a discriminação no futebol e atua ao lado da Fifa nessa causa. Segundo a entidade, 30 desses casos foram com torcedoras e outros 15 com jornalistas que trabalhavam na cobertura do Mundial.
Desde o início do torneio, acompanhamos de perto inúmeras situações constrangedoras pelas quais mulheres passaram na Rússia. Começando pelo episódio da “b***** rosa”, que, se por um lado envergonhou os brasileiros, por outro fez com que o país parasse para falar sobre um assunto extremamente necessário – e que na maioria das vezes é tratado como brincadeira. Depois, vieram à tona os beijos forçados em repórteres enquanto trabalhavam na cobertura da Copa.
Nada “anormal”, tudo conforme o script que se desenha em Mundiais desde que as mulheres passaram a frequenta-los – talvez isso até colabore para que elas sejam ainda tão raras nesse tipo de evento e, no caso das jornalistas, representem apenas 14% dos credenciados.
Sala de imprensa do Estádio de Spartak. Desafios: 1. achar um lugar pra sentar 2. achar mulheres na foto pic.twitter.com/e8meYfllTy
— Camila Mattoso (@mattoso_camila) June 27, 2018
Mas a grande diferença de 2018 foi que aquilo que foi sempre considerado “normal” e “brincadeira”, que “fazia parte do jogo”, agora gerou manchetes de revolta em todos os lugares do mundo. E isso é o primeiro passo para que essa realidade, tão comum à rotina das torcedoras e jornalistas esportivas, mude de vez.
Não há dúvidas de que os casos de assédio dessa Copa foram muito além dos 45 reportados pela ONG. Somente os presenciados por essa reportagem já chegam perto desse número. Bastava uma volta pela Nikolskaya Street, a tal “rua das luzinhas”, que virou ponto de encontro dos torcedores em Moscou, para presenciar diversos casos assim.
Um homem que segurava o rosto de uma mulher e tentava de todas as formas beija-lá enquanto ela tentava de todas as formas se desvencilhar. Outro que puxava a torcedora pelo braço tentando fazê-la parar seu caminho para nota-lo. Mais um que parava em frente a duas torcedoras e se movimentava conforme elas tentavam desviar, impedindo sua passagem. E mais dois que, dentro do estádio, pediram licença à torcedora para passar na arquibancada e, quando passou por elas, segurou o braço de uma a força e tentou beija-la.
Todos esses casos não nos foram contados. Foram presenciados ou vividos por uma de nós nos dias em que passamos na Rússia. E é preciso dizer que, infelizmente, não são muito diferentes dos que vivemos no Brasil como torcedoras, como jornalistas, como mulheres.
Jornalistas no Brasil também sofrem assédio
O Movimento #DeixaElaTrabalhar surgiu recentemente e serviu para dar mais destaque sobre o que toda mulher jornalista enfrenta diariamente nas coberturas esportivas pelo Brasil.
Em pesquisa comandada pela Abraji e divulgada no início deste ano, 64% das jornalistas que responderam o questionário disseram já ter sofrido abuso de poder ou autoridade de chefes ou fontes, 83,6 % já sofreram algum tipo de violência psicológica nas redações e 46% apontaram que as empresas onde trabalham não têm canais internos para receber denúncias de assédio e discriminação de gênero.
São incontáveis as vezes em que uma mulher foi xingada e assediada durante o trabalho ou então surpreendidas com tentativas de beijos e toques enquanto passam informações ao vivo aos telespectadores. São situações que elas enfrentam com frequência dentro e fora dos estádios, durante as coletivas, no dia-a-dia nas redações e que muita gente ainda rotula como brincadeira ou “mimimi”.
Elencamos aqui algumas situações e declarações de jornalistas que já viveram na pele o assédio, seja ele moral ou físico:
Camila Mattoso – repórter da Folha de S.Paulo
Em entrevista ao podcast semanal que fazemos na Rádio Central3, a jornalista revelou que o mais difícil é enfrentar o machismo velado que é presente dentro das redações esportivas. Camila revelou que já desconfiaram da maneira como ela obtinha informações de bastidores sobre os clubes e dirigentes e soube que os colegas de trabalho diziam que ela conseguia notícias exclusivas porque possuía “atributos” que eles não tinham.
Gabriela Moreira – repórter da ESPN Brasil
A jornalista passou por um momento muito desagradável durante a cobertura do título palmeirense da Copa do Brasil, em 2015, dentro do Allianz Parque. Ouviu xingamentos e assédios dos torcedores – como “eu vou te chupar todinha”e “vagabunda” – enquanto fazia seu trabalho dentro de campo.
Em forma de carta, Gabi relatou na época toda a violência que sofreu e aqui destacamos um trecho: “Você vai ver eu te chupando todinha, sua vagabunda”, foi um dos gritos que ouvi por longos 40 minutos. Gritado por dezenas de torcedores, na frente de pessoas com as quais me relaciono diariamente. Não pisquei, não desviei o olhar. Respirei bem de perto. Para que entenda o machista que nem o ar que ele respira eu não posso ter. Nada terão eles que nós não possamos ter. Ouvir o que ouvi hoje é para os fortes. Falar o que disseram, não. Aos covardes, um aviso: essa luta já está perdida. Pelo filho que eu crio, que nós criamos. Pela força dos que estão porvir. Não tenham dúvida, esse título já é nosso!
Bruna Dealtry – jornalista do canal Esporte Interativo
No dia 14 de março, a repórter trabalhava em uma cobertura ao vivo durante a partida entre Vasco da Gama e Universidad do Chile, pela Copa Libertadores.
Uma publicação compartilhada por Bruna Dealtry (@brunadealtry) em
No meio de uma passagem ao vivo para o canal, a repórter foi beijada a força por um torcedor vascaíno. Visivelmente incomodada, Bruna continuou a reportagem, apenas citando que o fato “não foi legal”. Em suas redes sociais, a jornalista condenou o assédio que sofreu e recebeu muito apoio de jornalistas e torcedores.
Renata Medeiros – Rádio Gaúcha
Três dias antes do ocorrido com Bruna Dealtry no Rio de Janeiro, a repórter Renata Medeiros foi insultada e agredida por um torcedor enquanto cobria o clássico Gre-Nal no Beira-Rio. “Sai daqui, sua puta”, foi o que ela escutou enquanto trabalhava.
“Sai daqui, puta”, gritou um torcedor do Inter pra mim. Pedi que repetisse enquanto eu filmava. Me agrediu. Nunca achei que fosse passar por isso TRABALHANDO pic.twitter.com/yn6W9scfp4
— Renata de Medeiros (@rmedeirosrenata) March 11, 2018
Kelly Costa – repórter da RBSTV
Em 2017, durante uma coletiva de imprensa, a jornalista fez uma pergunta ao então técnico do Internacional, Guto Ferreira, e a resposta do treinador foi bem machista.
Kelly questionou Guto sobre um problema técnico do time e recebeu a seguinte resposta: “Desculpe, eu não vou te responder com uma pergunta porque você é mulher e talvez não tenha jogado (futebol)”.
Depois disso, o treinador percebeu o que tinha feito e pediu desculpas para a repórter na zona mista.
Os clubes de futebol já tem ciência disso e tem emplacado campanhas – especialmente em datas especiais de homenagens às mulheres – sobre a importância do respeito e do combate ao assédio nas arquibancadas.
O Atlético-MG, depois de ver grande parte de sua torcida feminina se manifestar contra a renovação do contrato com o jogador Robinho, condenado pela justiça italiana por estupro – usou o dia 08 de Março para chamar a atenção sobre a violência contra a mulher.
Maria da Penha Maia Fernandes, a mulher que empresta seu nome à lei que criminaliza a violência doméstica e familiar, foi homenageada pelo clube que na ocasião, reforçou o serviço de denúncia, o “Ligue 180”. Nas arquibancadas, as torcedoras mostravam cartazes com os dizeres “meu lugar é aqui”.
O Corinthians também entrou em campo em março com os dizeres “Respeita As Minas” estampado em seus uniformes e acompanhado das atletas do time feminino.
Também em março deste ano, o São Paulo Futebol Clube anunciou que abrirá espaço no Estádio do Morumbi para receber mulheres que foram vítimas de violência. Relatamos sobre a iniciativa que faz parte do movimento “O SPFC se importa” aqui.
Clubes como o Atlético-MG, Atlético-GO, Bahia, Botafogo, Chapecoense, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Fluminense, Fortaleza, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Paysandu, Santa Cruz, Santos, São Paulo, Sport e Vitória declararam adesão ao movimento #DeixaElaTrabalhar e publicaram mensagens de apoio na época.
Justamente por conta de tudo que as mulheres enfrentam diariamente é tão importante que casos de machismo e assédio venham à tona em um evento tão grande como a Copa do Mundo. Porque falar sobre eles é o primeiro passo para combater o problema. Até pouco tempo atrás, nós, mulheres, torcedoras, jornalistas esportivas, acreditávamos que para ocupar esses espaços tão masculinos (como o futebol), era preciso passar por isso.
Fazia parte do jogo, vinha junto no pacote. Se quiséssemos estar ali, precisaríamos aprender a lidar com isso. A gente não se dava conta de que não éramos nós quem tinha que aprender nada. Eram eles.
São eles que precisam aprender a nos respeitar, a aceitar que temos direito de ocupar nosso lugar no futebol ou em qualquer lugar tanto quanto eles e que nada disso lhes dá o direito de invadir nosso espaço, de forçar coisas que não queremos ou de impedir o nosso trabalho para fazer o que eles chamam de “brincadeira” – e que para nós nunca foi engraçado.
A importância de falar sobre isso na Copa do Mundo é expor uma realidade que para nós, mulheres, é cotidiana e que já passou da hora de mudar.