Por que não há mulheres na arbitragem da Copa – nem no VAR?

Vídeo-arbitragem usado durante a Copa do Mundo na Rússia (Foto: SHAUN BOTTERILL – FIFA)

A Copa do Mundo da Rússia está sendo o Mundial da quebra de tabus para as mulheres. Na narração, o Brasil e o Reino Unido tiveram as primeiras mulheres comandando os microfones nas transmissões. Nos comentários, a América Latina teve sua primeira representante feminina analisando as partidas na televisão. No banco da comissão técnica, também pela primeira vez foi vista uma “intrusa” responsável por gerenciar a seleção croata.

Mas há um espaço que ainda está restrito para elas: o da arbitragem. E uma mudança nesse cenário parece muito pouco provável de acontecer tão cedo.

Entre os 36 convocados para a arbitragem desta Copa do Mundo de 2018, não há nenhum nome feminino. Nem mesmo no VAR, a inovação dos árbitros de vídeo implementada pela primeira vez no Mundial. A explicação para isso é mais complexa do que pode parecer.

A começar pelos números. Atualmente, no seu quadro de arbitragem, a Fifa tem 1076 homens (entre árbitros principais e assistentes) e 426 mulheres (sendo que nem todas elas têm a chancela para estarem em competições masculinas, que exigem um teste físico diferente e mais rigoroso). Ou seja, as mulheres representam menos de 30% da arbitragem da entidade e, das poucas que podem atuar em competições masculinas, nenhuma está no topo do ranking de suas federações nacionais.

Basicamente, entre os melhores árbitros do mundo e de todos os continentes, não há mulheres.

“Qual é a injustiça técnica? Não tem. O problema é que não dá oportunidade lá atrás para nenhuma concorrer com os homens”, afirmou às dibradoras Sálvio Spínola, ex-árbitro e atual comentarista de arbitragem da ESPN.

“Infelizmente, mesmo depois de aptas (a atuarem no futebol masculino), as árbitras não têm as mesmas oportunidades que os homens. Aí no caso não temos o que fazer. Em uma Copa do Mundo masculina principal acho muito difícil que isso aconteça (ter mulheres na arbitragem)”, pontuou Regildênia de Holanda Moura, árbitra Fifa desde 2012.

Regildênia só pode ser escalada para jogos de futebol feminino. A FIFA e a Uefa, não permitem que mulheres atuem em partidas masculinas. (Foto: Globoesporte.com/Divulgação)

Histórico

Infelizmente, os registros históricos a respeito das mulheres no futebol – e no esporte em geral – são muito raros. Não à toa até hoje sabemos pouco sobre quando ao certo o futebol feminino surgiu no mundo e no Brasil.

Léa Campos se tornou a primeira árbitra mulher do futebol mundial (Foto: Acervo Pessoal)

Em termos de arbitragem, o que se tem de documento mostra que a primeira mulher a atuar nessa função foi Léa Campos. A brasileira formada em Educação Física conseguiu fazer um curso de arbitragem na década de 1970 quando o futebol era esporte proibido por lei para mulheres no país e conseguiu licença para atuar em alguns estados.

Ganhou finalmente chancela da Fifa em seu diploma em 1971, quando apitou torneio amistoso de futebol feminino no México. No Brasil, chegou a apitar também alguns jogos de futebol masculino e deixou seu nome na história como possivelmente a primeira mulher a conseguir o feito.

Léa Campos (ao centro) recebeu homenagens do Museu do Futebol em 2015, na abertura da exposição “Visibilidade Para o Futebol Feminino” (Foto: Roberta Nina / dibradoras)

O Brasil só voltou a ter uma representante feminina na arbitragem com Silvia Regina em 2003 no histórico trio feminino ao lado de Ana Paula Oliveira e Aline Lambert. Elas chegaram a ocupar um espaço importante apitando jogos de Série A do Brasileiro e até Copa-Sul-Americana.

Ana Paula Oliveira, Silvia Regina e Aline Lambert durante Guarani e São Paulo, em 2003, pelo Brasileirão (Foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

Mas desde então, poucas representantes femininas surgiram nesse campo – algumas poucas assistentes ainda figuram no Brasileiro, mas a maioria ainda busca espaço no futebol feminino. Como árbitra principal em competições masculinas de elite no Brasil, não se viu mais mulheres desde Silvia Regina.

Há uma dificuldade maior para as mulheres atuarem no masculino também, que é o teste físico. Até 2002, os testes exigidos pela Fifa eram muito mais simples e não tinham diferenciação entre feminino e masculino. Dali em diante, as exigências de preparo para arbitragem aumentaram muito, passando a ter testes que incluem 6 tiros de 40 metros pra começar, depois 40 tiros de 75 metros e assim por diante. Sendo assim, muitas mulheres acabam não conseguindo passar nos índices masculinos, e assim ficam restritas às competições femininas.

Árbitra paranaense, Edina Alves Batista, realiza teste físico ao lado dos homens para conseguir apitar a Copa do Mundo Feminina em 2019 (Foto: Acervo pessoal)

O cenário internacional não é muito diferente do brasileiro. Só no ano passado uma das principais ligas europeias masculinas teve uma mulher no comando da arbitragem – foi Bibiana Steinhaus, na Bundesliga.

“Só que na Alemanha, elas têm um futebol feminino competitivo, que dá notoriedade. Aqui na América do Sul, infelizmente não tem. Lá na Europa, tem muitas árbitras que nem querem trabalhar no masculino”, disse Sálvio Spínola.

Já na Fifa, há um certo “costume” ou “padrão” de escalar mulheres para apitarem jogos de mulheres e homens para apitarem jogos de homens. Tanto que a Copa do Mundo de futebol feminino em 2015 foi feita exclusivamente por arbitragem feminina. A questão é que os torneios femininos infelizmente não têm a mesma visibilidade dos masculinos e, consequentemente, a presença das mulheres nesse campo de atuação ainda é muito pouco notada.

A árbitra Edina Alves Batista e as assistentes Neuza Back e Tatiane Sacilotti foram escolhidas pela FIFA para trabalharem na Copa do Mundo FIFA Sub-20 Feminina 2018 (Foto: Kin Saito/CBF)

Se houvesse mulheres em competições importantes masculinas como uma Copa do Mundo, será que mais meninas não se interessariam pela carreira?

“Nós temos visto uma queda no número de mulheres que buscam a carreira da arbitragem e isso é muito triste. Houve a Silvia Regina aqui e depois parece que houve um retrocesso”, afirmou Renata Ruel, árbitra assistente da Federação Paulista.

No Brasil, hoje existem 132 mulheres na arbitragem segundo a CBF, sendo 36 árbitras (duas aptas a atuarem no masculino), 87 assistentes (26 aptas a atuarem no masculino, sendo que 25 já atuaram), e nove instrutoras.

Entre as poucas que estão aptas a atuarem no masculino, há uma reclamação de que elas também acabam pouco escaladas para os jogos pela CBF, o que dificultaria para as mulheres conseguirem uma carreira com muitos jogos no currículo a ponto de poderem disputar com os melhores árbitros do país para um dia estarem em pé de igualdade com eles.

“Olha o currículo do cara que apitou hoje primeira vez a Copa do Mundo, ele tem 16 anos de arbitragem na Fifa. A Regildênia está há 10 anos na Fifa, só que ela não tem jogo, porque não escalam. Ela só vai concorrer se for testada no jogo. Então tem que trabalhar a base da arbitragem feminina”, disse Sálvio Spínola.

Sálvio Spínola, ex-árbitro de futebol e atual comentarista de arbitragem pelos canais ESPN (Foto: ESPN/Divulgação)

A CBF, por sua vez, diz que “As designações (escalas) para o quadro feminino seguem as mesmas condições do quadro masculino: fases da competição; importância e grau de complexidade da cada partida; a qualificação, o condicionamento físico e a performance dos árbitros; jogos de clubes da federação de origem; jogos de clubes da federação atual; atuação em partida de uma das equipes na rodada anterior; árbitros cuja designação se mostrar desaconselhável para os superiores interesses do futebol ou à carreira do próprio árbitro, conforme avaliação da comissão de arbitragem; demanda jurídica entre as partes.​”

Mudança no cenário?

No ano passado, pela primeira vez em muito tempo a Fifa escalou uma mulher para apitar uma competição masculina: foi a suíça Esther Staubli, que apitou Japão x Nova Caledônia no Mundial Sub-17 em outubro de 2017.

Esther Staubli foi a primeira mulher a apitar torneio masculino da Fifa após 16 anos (Foto: Getty)

Agora, com o VAR, alguns árbitros foram escalados para essa Copa do Mundo somente para ficarem na sala de vídeo. Essa seria uma área que as mulheres poderiam ocupar, algumas argumentam. Sálvio Spínola, porém, explica que a Fifa utiliza os mesmos critérios para o VAR que para a arbitragem do campo. “A Fifa escala pro VAR árbitros da ativa. E eu concordo com isso, tem que ter experiência porque ali você tem que estar preparado para tomar uma grande decisão”, afirmou.

Diante desse cenário pouco favorável às mulheres na arbitragem, nem Sálvio, nem Regildênia são otimistas com relação ao futuro. Os dois acreditam que ainda vai demorar para mulheres terem a chance de apitarem uma Copa do Mundo masculina.”Hoje acho muito difícil isso acontecer”, afirmou a árbitra.

“O grande problema é que esse debate surge em Copa de 2018. A mulher tem que pensar em estar na Copa em 2030, por exemplo. Tem que mudar muita coisa para isso acontecer, a estrutura da arbitragem feminina”, pontuou Salvio.

“Todo dia 8 de março você vai ver no site da CBF uma foto das mulheres árbitras, mas é só isso, mais nada. Você não vê nenhum movimento nesse sentido. Tem discriminação, sim, muita, rejeição pro trabalho das mulheres, em vários países, então para fazer com que elas cheguem nesse nível acho difícil, porque não vejo nem semente sendo plantada ainda para colher isso no futuro”, finalizou.

Na sede da CBF, a árbitra Rejane Caetano (RJ), e as assistentes Daiane Caroline Muniz dos Santos (MS) e Márcia Bezerra Lopes Caetano (RO) receberam as insígnias da FIFA para atuarem no Sul-Americano Sub-20 Feminino do Equador, realizado em janeiro deste ano. (Foto: Lucas Figueiredo/CBF)

Em nota, a CBF afirmou que criou recentemente a Coordenadoria de Desenvolvimento de Arbitragem Feminina e que “buscando ampliar o número de mulheres em seus quadros, tem reduzido as exigências para que as mulheres ingressem na Seleção Nacional do Árbitros de Futebol (SENAF), em comparação com o quadro masculino em competições de categorias de base masculinas e femininas”.

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