Demoramos, mas chegamos: o 1º jogo da seleção narrado por uma mulher

Vanessa Riche, Isabelly Morais e a goleira Bárbara, transmissão 100% feminina para Brasil x Suíça (Foto: Divulgação Fox Sports)

Não foi ontem que as mulheres chegaram no Jornalismo Esportivo. Essa história começou a ser construída ainda na década de 1960, com as pioneiras que ousaram até mesmo ocupar os vestiários dos jogadores para entrevistá-los, assim como faziam os repórteres. As mulheres passaram por muito preconceito, muito assédio e ouviram muitas provocações, como “volta para a cozinha” e “lugar de mulher não é no campo”, até chegarem ao dia de hoje.

O dia em que, pela primeira vez, um jogo da seleção brasileira na Copa do Mundo foi narrado por uma mulher. Aliás, mais do que isso, foi narrado, comentado e analisado somente por mulheres. Uma transmissão 100% feminina na Fox Sports 2 para o jogo Brasil x Suíça, o primeiro na caminhada da seleção rumo ao hexa.

Isabelly Morais, narradora de apenas 20 anos nascida em Itamarandiba (interior de MG) que foi formada na Rádio Inconfidência, em Minas Gerais, foi quem comandou os microfones na transmissão – ela narrou pela primeira vez pela rádio em novembro do ano passado, passou a ser escalada com frequência para jogos de primeira divisão esse ano e, no processo seletivo #NarraQuemSabe da Fox, passou pela preparação completa para poder estrear em televisão no Mundial. Fez a abertura do torneio com a goleada da Rússia em cima da Arábia Saudita e agora narrou o golaço de Philipphe Coutinho na estreia da seleção contra os suíços pelo placar de 1×1.

Ao lado dela, estavam a experiente jornalista Vanessa Riche e a goleira da seleção brasileira de futebol feminino, Bárbara, nos comentários. Tanta história reunida em uma só cabine: Vanessa, que foi uma das primeiras mulheres a conseguirem espaço na narração televisiva (ela fez transmissões esportivas no SporTV, no início dos anos 2000), a goleira Bárbara, representando o futebol feminino, que acaba esquecido e negligenciado nas coberturas esportivas, e Isabelly mostrando a cara de uma nova geração disposta a quebrar de vez todas as barreiras que já foram erguidas para as mulheres no Jornalismo Esportivo.

Histórico da narração feminina

No dia 3 de dezembro de 2017, dois jogos da Série A do Campeonato Brasileiro foram narrados por mulheres – um recorde na época por ter duas vozes femininas ao mesmo tempo transmitindo o futebol para todo o país.
Em Minas, Isabelly Morais – a mesma que narrou a primeira partida desta Copa do Mundo entre Rússia e Arábia Saudita (saiba mais aqui) – foi a responsável por narrar a emocionante partida entre Atlético-MG e Grêmio na Arena Independência, um jogo de 7 gols, imprevisível do começo ao fim.

E em São Paulo, Elaine Trevisan comandou os lances de São Paulo e Bahia no Morumbi. Mais do que isso, essa partida ainda teve outro feito histórico – foi um jogo narrado, comentado e reportado apenas por mulheres. Elaine na narração, Juliane dos Santos nos comentários e Natália Santana na reportagem formaram o trio feminino que transmitiu as 2 horas de futebol na Rádio Poliesportiva. Falamos sobre esses dois grandes feitos em nosso podcast pela Central3, em dezembro do ano passado: confira aqui.

Transmissão 100% feminina na Rádio Poliesportiva em 2017 feita por Natália Santana, Juliane Santos e Elaine Trevisan

O último registro de uma equipe 100% feminina no futebol masculino havia sido no final de década de 60. Claudete Troiano narrou, e Jurema Yara e Leilah Silveira comentaram uma partida pela Rádio Mulher.

Confira abaixo alguns nomes que abriram espaço no Jornalismo Esportivo para essa nova geração de mulheres que vem surgindo na televisão e no rádio brasileiro:

Zuleide Ranieri

Nasceu em Minas Gerais, em uma cidade chamada Fortaleza, em novembro de 1945. Começou a profissão de jornalista esportiva na Rádio Cacique, em Santos, e em seguida trabalhou na Rádio Piratininga, de São José dos Campos, no Vale do Paraíba-SP.

Foi uma das pioneiras a comandar a primeira equipe exclusivamente feminina da Rádio Mulher, em 1971, ao lado das jornalistas Claudete Troiano, Germana Garilli, Jurema Yara, Leilh Silveira e Léa Campos.

Zuleide foi reconhecida mundialmente como uma das pioneiras na narração de partidas de futebol (Foto: Acervo Museu do Futebol)

A equipe esportiva feminina da Rádio Mulher tinha um slogan que dizia “a cada mulher no estádio, um palavrão a menos” e em entrevista ao programa Radioamantes no Ar, pela rádio web “Showtime”, Zuzu contou sobre as dificuldades que enfrentaram na década de 70 – não tão diferentes do que é dito até os dias de hoje.

“Na realidade a gente enfrentava problemas quando tinha uma torcida à nossa esquerda e outra à nossa direita, então quando a gente vibrava muito com o gol de um dos dois times (na transmissão), sempre escutávamos aquele gritinho: ‘vai pra casa, vai pra cozinha, vai fazer comida’. De profissionais da nossa área, foram poucas críticas, as que surgiam eram do tipo ‘será que vai vingar?’. Naquela época era difícil porque, a transmissão esportiva, especialmente do futebol, é uma coisa ligada ao homem há muito tempo. Então quando uma mulher começa a transmitir e narrar um jogo de futebol, todo mundo fica ‘meio assim’. Todo mundo achava que não ia vingar, que não ia dar certo, que mulher não tem esse potencial. Mas quando começaram a perceber que a audiência estava aumentando e que o povo olhava pras cabines e gritava pra gente, e passamos a receber cartas, não só na Rádio Mulher, mas quando chegávamos ao estádio vinham entregar um monte de correspondência pra gente e isso foi muito bom”

Zuleide Ranieri Dias, primeira mulher narradora de futebol, morreu em 14 de outubro de 2016, em São Paulo, vítima de um infarto agudo.

Germana Garilli

Nascida em dezembro de 1927, antes de se tornar jornalista esportiva, foi atleta de futebol feminino no Clube Atlético Indiano, também deu aulas de ginástica e praticou judô. Também foi foi atleta militante do São Paulo Futebol Clube e ajudou o ex-presidente Laudo Natel, na campanha da construção do estádio do Morumbi.

Germana Garilli também foi jogadora de futebol (Foto: Acervo Germana Garilli / Museu do Futebol)

Como jornalista, foi cronista em alguns veículos, entre eles, a Gazeta de Santo Amaro, onde assinava a coluna “A Bola é Dela”, em 1972. Também foi locutora da Rádio compondo a equipe onde somente mulheres faziam parte. Foram cinco anos de sucesso nessa empreitada.

“Lugar de mulher não é no campo, não falo com repórter mulher.” Quando ouviu isso do então goleiro do Palmeiras, que ela nem gosta de citar o nome, Gegê deu de ombros e seguiu seu trabalho nos gramados. Como uma das primeiras mulheres a se aventurarem como repórter de campo no futebol, ela coleciona boas histórias e trata de esquecer as vezes que sua competência foi colocada em xeque – apenas por ser mulher.

Germana Garilli entrevistando o jogador Rivelino na década de 70 (Foto: Acervo de Germana Garilli)

Germana é reconhecida, oficialmente pela FPF (Federação Paulista de Futebol), como a primeira repórter feminina profissional a fazer cobertura do futebol, no campo.

Regiani Ritter

Nasceu em Ibitinga, em 1947. Foi uma das primeiras mulheres a ser repórter de campo e, mais do que isso, uma das primeiras a conseguir espaço para analisar e comentar futebol – na Mesa Redonda, da TV Gazeta. Em entrevista às dibradoras em outubro de 2016 (ouça aqui no podcast) a jornalista nos contou sobre os tempos em que era a única representante feminina no campo de tinha de entrar nos vestiários para entrevistar os jogadores tomando banho – não existia zona mista naquela época!

“No começo da cobertura, eu esperava e pedia para meu operador ou pelo meu câmera me avisarem quando os jogadores estivessem parcialmente vestidos e aí eu entrava. O Casagrande foi o meu primeiro entrevistado nu. Quando todos os jogadores correram, ele foi o único que ficou e falou comigo. Eu olhei bem nos olhos dele e foi assim. Eu estava lá única e exclusivamente para trabalhar. Foi um grande amigo”, contou a jornalista.

Regiani Ritter entrevista os ex-palmeirenses Antônio Carlos e Velloso, dentro do vestiário. (Foto: Diário Popular)

Atualmente apresenta dois programas a partir das 11h na própria Rádio Gazeta (AM): o “Disparada no Esporte”, que vai ao ar de segunda à sexta das 11h às 12h30 e o “Revista Geral”, que entra em seguida das 12h30 às 14h. Ela também é reconhecida pela Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo, que criou em 2010 o troféu “Regiani Ritter”, para agraciar as jornalistas que se destacam na editoria de esportes, dos mais variados veículos de comunicação do país.

Kitty Baliero

A jornalista nasceu em Bauru onde cursou Comunicação Social na Fundação Educacional de Bauru (Unesp) e formou-se em Jornalismo pela Fundação Cásper Líbero, em São Paulo (SP), em 1985.

Kitty Balieiro ao lado de Bellini na década de 80. (Foto: Arquivo pessoal)

Começou sua carreira jornalística na TV Bauru, afiliada da Rede, trabalhando na editoria de Esporte até 1983, quando se mudou para São Paulo e ingressou na equipe de Esporte da TV Globo, onde ficou até 2008. Cobriu os Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984, os Jogos de Barcelona em 1993 e a Copa do Mundo na Itália em (1990).

Viveu dois anos e meio nos Estados Unidos e, de volta ao Brasil, retomou os trabalhos pela ESPN, como correspondente no Canadá onde atuou como repórter e apresentadora para os jogos Pan-Americanos de 1999. No ano seguinte, foi editora dos programas Planeta água e De olho em Sydney e assumiu a chefia de Redação da ESPN Brasil.

Em 1999, Kity Balieiro foi chefe de reportagem em uma equipe praticamente de mulheres da ESPN nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg. (Foto: Arquivo pessoal)

Em 22 de novembro de 2011, a Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo (ACEESP) divulgou o seu nome entre os vencedores do Troféu Ford ACEESP 2011para receber o Troféu Regiani Ritter na categoria Especial, pelo trabalho que realiza na ESPN.

Em entrevista recente às dibradoras, Kitty falou sobre a participação feminina no meio esportivo. “Vejo com muita alegria essa evolução de ter cada vez mais mulheres trabalhando no universo do futebol e do esporte em geral. O espaço de opinião ainda é pra quebrar barreiras nas emissoras de televisão e de rádio. Ainda existe muito preconceito. A narração esbarra numa coisa cultural que existe, uma coisa de não estarmos acostumados. Mas existe determinação das mulheres, então elas começam a quebrar essa barreira. Isso já está mudando e vai mudar ainda mais com o tempo”, disse.

Mulheres fazendo história!

O dia foi histórico, e a Copa como um todo está sendo histórica. São as primeiras narrações femininas acontecendo e as primeiras análises táticas feitas por mulheres. Na Fox Sports 2, o programa “Comenta Quem Sabe” analisa as rodadas da Copa do Mundo, diariamente, às 20h, sob o comando de Vanessa Riche, Livia Nepomuceno e Daniela Boaventura. A narradora Isabelly Morais e a comentarista de arbitragem, Nadine Bastos, completam a mesa.

Bancada comandada por mulheres no “Comenta Quem Sabe” (Foto: Fox Sports/Divulgação)

Pelo SporTV, o destaque é a participação da jornalista da Rádio Globo/CBN, Ana Thaís Matos, que marca presença todos os dias no Troca de Passes  para analisar os jogos do Mundial, ao lado de Gustavo Villani e Tiago Maranhão.

Estas são as primeiras coberturas do maior torneio de futebol do mundo com participação feminina e comandadas por mulheres (são elas, inclusive, que chefiam a reportagem e o projeto da Copa para o Grupo Globo neste Mundial). Uma evolução que precisa ser registrada, precisa ser celebrada e, acima de tudo, que precisa continuar.

Ana Thaís Matos entre Gustavo Villani e Tiago Maranhão no Troca de Passes.

Importante ressaltar que nosso espaço dentro do UOL Esporte também é muito importante e representativo. Ter um blog dentro do site e poder comentar sobre futebol e sobre o esporte praticado por mulheres em um dos maiores portais de notícias do Brasil é de suma importância e relevância para o dibradoras. Também participamos do Placar UOL, comentando as partidas dos campeonatos Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores da América e, agora, da Copa do Mundo.

Que seja cada vez mais comum ver mulheres narrando, comentando, comandando. Que o espaço seja cada vez mais democrático e compartilhado entre elas e eles. Nosso desejo é que o Jornalismo Esportivo seja mais inclusivo, deixando de lado a questão de gênero e valorizando mais a competência dos profissionais da comunicação.

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