O futebol traz muita coisa na vida de quem se entrega a ele de corpo e alma. Pode parecer que não, e muitos céticos seguem repetindo para nós que “é só um jogo” e não vale a pena tanto sofrimento. Mas quem vive na pele o futebol de verdade, sente no coração o quanto ele nos dá.
A começar pelos amigos. A família boleira que se forma em torno de um time não precisa ser de sangue, só precisa compartilhar o mesmo amor. Depois são as alegrias, as tristezas, a raiva da derrota e a esperança de que os tempos áureos sempre voltarão. O futebol, no fundo, é uma metáfora da vida: cheia de altos e baixos, de derrotas, de desafios a serem superados, e com algumas conquistas que valem por todo o sofrimento.
Dona Zizi viveu tudo isso em seus 87 anos de vida. Sorriu e chorou com o Vasco da Gama, perdeu a voz de tanto gritar, viajou em caravanas por horas na estrada, presenciou vitórias históricas e derrotas doloridas da arquibancada. Até que na reta final de sua trajetória, um desafio maior a afastou do estádio. O Alzheimer levou dela sua mobilidade, um pouco de sua voz e de sua fala, mas não conseguiu tirar do seu coração o amor cruzmaltino. Esse já tinha virado laço de família, no maior dos clichês mesmo, já que hoje são pelo menos três gerações de vascaínos por sua causa.
Prova disso é que no reencontro com São Januário, dona Zizi deixou clara a memória que aquele lugar lhe trazia. “Ela lembrou. Eu insisti: a senhora sabe onde está? E ela por duas vezes respondeu: São Januário. Me arrepiou na hora”, contou a filha, Fátima. Foi essa visita que fez um outro reencontro acontecer. Desta vez com um ídolo do passado.
Só que ídolos de verdade nunca são só do passado – eles são atemporais. São os nossos exemplos, aqueles que desejamos ser, aqueles a quem desejamos abraçar e apenas dizer: obrigada. Darão os nomes aos nossos filhos, estamparão para sempre nossas camisetas e nossos corações.
Mas melhor do que os gols que fazem e que os títulos que conquistam com a camisa do nosso time, é conhecê-los de verdade e ver que sustentam tudo aquilo que representam. Nada pode ser mais decepcionante do que conhecer um ídolo e descobri-lo arrogante, mal educado, preconceituoso.
Ao mesmo tempo, poucas coisas são tão incríveis quanto reconhecer em um ídolo a essência daquilo que sempre imaginamos nele. Foi o que aconteceu quando dona Zizi e sua família receberam a visita de Juninho Perbambucano.
O ex-jogador e a eterna vascaína já haviam se encontrado uma vez em 2011, após o título da Copa do Brasil, quando ela ainda andava e acompanhava os jogos de perto. Agora, ao saber da comovente história, ele quis visitá-la novamente, desta vez indo até a casa da família.
Entre idas e vindas na agenda, Juninho conseguiu reservar uma data no início deste mês e chegou à casa de dona Zizi por volta de 16h. De lá, ele só saiu depois de quase 4 horas de muitas conversas, abraços e uma troca de carinho que vai ficar para sempre na memória – tanto dele, quanto da senhora de quase 90 anos.
“Esse reencontro foi sem palavras. Desde o momento que ele chegou, que energia maravilhosa, sentou como gente da gente, beijou minha avó, falou bastante de futebol. Foi como se tivesse entrando uma pessoa da família, tratou minha mãe com um carinho que nós nunca vamos esquecer. Ele sempre foi ídolo, mas agora mais do que nunca, foi inesquecível”, afirmou Michelle Barros, neta de dona Zizi e herdeira da paixão pelo Vasco.
“Fui premiado com um encontro muito bacana, dona Zizi, uma vascaína especialíssima, que atravessa um momento difícil na vida. Fui muito bem recebido na casa dela, foi um momento muito especial pra mim. A energia que eu recebi dessa família é algo que nunca vou esquecer”, descreveu Juninho Pernambucano.
Quando foi a São Januário em 2017, mesmo sem se lembrar de muita coisa, dona Zizi sabia reconhecer a camisa de Juninho Pernambucano. “Não sei o que acontece, mas ela sempre lembra do Juninho. Sempre fala dele, não sei se é porque foi ele que entregou para ela o troféu da Copa do Brasil e a acolheu tão bem na homenagem que eles fizeram há seis anos, mas é o último ídolo que ficou na cabeça dela”, descreveu Fátima.
“Eu mostrei uma camisa número 8 para ela com uma foto e perguntei: quem vestia essa camisa? E ela falou: Juninho Pernambucano. Na hora. Aí a gente canta o hino pra ela, ela chora, ela canta junto…”
Diante disso, já dá para imaginar a emoção da família toda ao presenciar o reencontro do ídolo com dona Zizi. Hoje, ela não consegue expressar em palavras suas emoções, mas ao ver Juninho, seus olhos brilharam.
“Agora aos quase 88 anos, receber o Juninho em casa foi certamente um presente de Deus pra minha avó, que mesmo com Alzheimer, se lembra e canta a música com o nome dele. Foi uma troca de energia inexplicável”, contou Michelle.
“Entre conversas, risadas e várias fotos, mesmo sem falar, sentiu todo o carinho que ele levou até ela. Foi um momento mágico, e pra nós da família podermos proporcionar esse encontro é algo muito especial. Só temos a agradecer ao Juninho por todo carinho e toda atenção que nos deu. Sempre com muito carinho, parecia que estava se sentindo em casa, como se conhecesse cada um ali a muito tempo”.
Gerações de Vascaínos
Michelle já é a terceira geração de vascaínos da família que herdam o amor de dona Zizi. Mesmo com o pai flamenguista e a mãe botafoguense, ela acabou pendendo para o lado da avó, seu exemplo de vida.
“No meu caso, virei vascaína por querer seguir minha avó mesmo, porque via toda aquela paixão. Desde que nasci moro com ela, então certamente é meu maior exemplo de tudo. E mesmo tendo um pai flamenguista e uma mãe botafoguense, eu preferi seguir os passos da minha vó e não me arrependo”, brincou Michelle.
Dona Zizi nasceu em 1930 em uma época que futebol era, definitivamente, apenas coisa de homem. Mas ela nunca se intimidou com isso, frequentava o estádio mesmo sozinha e nunca deixou de ir, mesmo sem a companhia do marido, botafoguense.
“Era uma época em que não era bem visto uma mulher no estádio, e muitas vezes ela ia sem a companhia do meu avô, que muitas vezes não gostava que ela fosse, mas isso nunca foi um problema. Ela não se incomodou e enfrentou todas as imposições da sociedade, de que futebol era coisa de homem e que mulher era pra cuidar da casa e da família”, contou Michelle.
É claro que o legado deixado por dona Zizi aos Barros vai muito além da paixão pelo Vasco. A força dela como matriarca da família foi o que guiou as mulheres da casa a passarem essa liderança e independência de geração para geração. Os laços que o futebol criou naquela casa foram muito além do esporte e chegaram até mesmo a Juninho, que era ídolo e, por algumas horas, virou o melhor amigo da família.
“Certamente é o exemplo mais próximo que tive de que o fato de sermos mulheres não nos impede de fazer o que quisermos, independente do que a sociedade impõe ou não. Porque além de ter frequentado estádios e viajado sozinha com os filhos só pra ver o Vasco jogar, ela conseguiu guiar uma família que hoje é muito unida e que a tem como maior exemplo de sacrifício (porque as dificuldades eram muitas) e dedicação”, disse Michelle.
“O legado que ela deixa pra nós é que esse amor pelo futebol está no sangue, e para nós, vascaínos é a nossa essência, a nossa raiz que jamais vai ficar pra trás, e é passado de geração em geração de forma até natural.”