A PM está coibindo a violência nos estádios: ela barrou meu caderno

Foto: Luiza Oliveira / Uol

A violência no futebol é um problema sério e que vem se agravando cada vez mais nos últimos anos. No último final de semana, inclusive, um torcedor alvinegro morreu após um briga entre representantes das torcidas de Guarani e Ponte Preta em Campinas. Os casos se multiplicam a cada clássico, seja em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar. Isso é fato e é inegável que se precisa fazer algo a respeito.

Mas aí vamos falar sobre o que está sendo feito na prática. A proibição de bandeiras de mastro no estado de São Paulo foi uma das ações. Depois a proibição da venda de álcool. Depois a proibição da presença da torcida adversária em clássicos. A maior novidade agora foi a proibição da entrada de um caderno na arquibancada.

Não era clássico, mas era dia de jogo grande no Morumbi: São Paulo e Rosário Central se enfrentariam em partida decisiva da primeira fase da Copa Sul-Americana. Na entrada da Arquibancada Azul, uma das mais lotadas do estádio, estava eu, uma amiga, e um grupo de amigos para entrar no jogo faltando cerca de 40 minutos para ele começar. O caos do portão é sempre um capítulo à parte – especialmente para as mulheres, que precisam passar pelas filas dos homens até chegarem ao seu local de revista, localizado logo atrás do deles.

O caderno barrado

Chegando lá, a policial abriu minha mochila, retirou item por item até descobrir o “material proibido”: um caderno de anotações de trabalho.

– A senhora não pode entrar com esse caderno, é proibido pelo estatuto do torcedor.
– Oi? Mas eu venho sempre aqui, estou sempre com esse caderno na mochila e nunca me barraram.
– A senhora deveria ler o estatuto do torcedor antes de vir.

Eu insisto que o material é de trabalho, não posso jogar fora.

– A senhora pode sair por aqui (aponta pela multidão) e deixar lá fora em uma das barracas.
– Moça, olha o caos que está aqui. Como vou sair por essa multidão? Já é um caos para passar por eles, os caras tocando na gente, assédio pra caramba.
– Senhora, é só pedir licença.

Devo elogiar a postura da policial que, ao contrário de muitos outros com quem já tive que lidar no estádio, foi bastante educada e manteve o profissionalismo. Já eu, ao contrário do que costuma acontecer, fui me exaltando aos poucos, indignada com a situação. Veio um outro policial, que reiterou a proibição do caderno. Perguntei por quê? “Porque é altamente inflamável”, ele disse.

Briga na torcida do São Paulo em clássico de 2013 Foto: Simon Plestenjak/UOL

“Moço, tem coisa altamente inflamável na minha roupa também. Aliás, ali atrás, tem cara entrando com coisa muito pior aqui, tem cara que entra com garrafa de vodca ALTAMENTE INFLAMÁVEL e vocês estão preocupados com meu caderno?”, questiono no auge da minha revolta.

“Se estão entrando com essas coisas, está havendo uma falha”.

Foi quando minha amiga me puxou já prevendo o pior: eu poderia ser detida por desacato. E então enfrentamos a multidão, fomos para o lado de fora e buscamos um lugar para deixar o caderno guardado. “Aqui é guarda-volumes, 10 reais”, me disse o cara do estacionamento. “Moço, é um caderno, estamos pedindo um favor, só”. “Aqui é 10 reais”, ele responde.

Perdemos mais uns bons minutos em busca de um local que não me extorquisse para guardar um caderno. Negociei por 5 em outro estacionamento. Entrei no jogo com uma raiva descomunal – não do time em campo, como é de praxe, mas de um sistema que definitivamente parece não buscar resolver os problemas reais e apenas “cumpre ordens”.

Foto: Alex Almeida/UOL

“Está no estatuto do torcedor”, foi o argumento que me deram. “É altamente inflamável”, reforçaram. Nada disso é mentira. No Estatuto, não encontrei a palavra “caderno”, mas se fala de “objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência” e de “não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos”. É verdade que meu caderno poderia, eventualmente, machucar se eu o batesse com força na cabeça de alguém. Ou poderia espalhar fogo se eu acendesse um isqueiro nele.

Mas convenhamos: será que era realmente essa minha intenção com esse caderno na mochila? Ou será que eu saí direto do trabalho para o estádio e realmente não tinha onde deixar o caderno antes do jogo?

Conversando com um major da Polícia Militar hoje sobre o fato, ele me disse: “É, faltou bom senso dos policiais nessa revista. É material inflamável, mas não precisa barrar um estudante com um caderno ou uma pessoa com material que é de trabalho por causa disso”.

Relatei também o ocorrido para o clube, que se manifestou por meio de nota: “O São Paulo Futebol Clube lamenta profundamente a experiência negativa da torcedora e reafirma seu compromisso – estabelecido desde o manifesto no Dia Internacional da Mulher – em buscar ações e iniciativas que façam a experiência do público feminino no estádio ser mais agradável e menos hostil. O clube já conversa com a Polícia Militar para encontrar pontos de melhoria no processo de revista (iniciativa motivada por relatos recebidos pelo canal saopaulinas@saopaulofc.net e compartilhados em encontros presenciais com torcedoras, realizados no estádio do Morumbi), mas reitera que esta é uma atribuição da PM sobre a qual não possui ingerência.”

Essa situação me fez lembrar uma outra em 2016, quando uma menina de 7 anos (SETE ANOS) foi barrada no Allianz Parque porque estava com o rosto pintado de verde e branco porque “pinturas dificultam a identificação das pessoas”. Dias depois, a mesma PM que a barrou, pediu desculpas dizendo que “faltou bom senso ao policial que impediu a entrada de uma criança, que risco nenhum poderia oferecer à segurança do evento.”

Foto: Reprodução Twitter

O que a gente percebe é que tem faltado bom senso de todos os lados para lidar com o problema da violência no futebol. É o Ministério Público que determina torcida única, é a polícia que impede entrada de caderno, são os clubes que dão toda a liberdade e acesso total para as organizadas…é todo mundo “tirando o sofá da sala” em vez de se propor a resolver de fato uma situação que tem afastado cada vez mais as pessoas dos estádios.

Não é proibindo caderno que a gente vai acabar com briga ou impedir que as mortes continuem acontecendo – aliás, nenhuma dessas medidas têm impedido, já que quase todo mês tem uma notícia nova de torcedor hospitalizado ou morto por conta de briga entre torcidas. A violência continua, são inúmeros casos dentro e fora do estádio.

Quando vamos perceber que: não, essas medidas não estão adiantando. Mais: elas não fazem sentido algum. Eu não fui a única. Um amigo foi barrado por causa de um livro uma vez. Outra não pode entrar com uma revista Placar. A verdade é que sobram regras (inúteis), o que falta mesmo é boa vontade para resolver.

PS: Mas já que regras são regras, talvez uma boa estratégia poderia ser dar um caderno a Trellez no próximo jogo para ver se ele também acaba barrado e não corre risco de entrar em campo.

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn