Houve um tempo em que só os homens podiam votar ou participar da política. Houve também um tempo em que mulheres não podiam usar calça, nem saia acima do joelho. Houve ainda o tempo que se dizia que lugar de mulher era na cozinha. E está chegando um novo momento em que poderemos dizer: houve um tempo em que narrar jogos de futebol era coisa só para homem.
O ano de 2018 já começou para quebrar esse paradigma. Dois canas esportivos da TV fechada anunciaram processos seletivos que iriam selecionar narradorAs para ocuparem postos de destaque – narrando jogos da Champions League no Esporte Interativo, e partidas do Brasil na Copa do Mundo na Fox Sports.
Um deles terminou nesta semana com uma final emocionante disputada entre duas mulheres muito talentosas – Viviane Falconi e Elaine Trevisan. Antes mesmo do anúncio de quem seria a chamada “Narradora Lays” que iria para a Espanha narrar o jogo de volta entre Real Madrid e Bayern de Munique no Santiago Bernabéu, as duas já haviam feito história: foram as primeiras mulheres a narrar um jogo de Champions League – e um jogo de 7 gols, como foi o emocionante Liverpool 5 x 2 Roma.
Ouça aqui as narrações delas na semifinal da Champions League
Todas as 12 mulheres que participaram do reality show do Esporte Interativo, aliás, fizeram história juntas. Elas formam uma nova geração de mulheres a quem está sendo permitido sonhar ser narradora esportiva. Como bem definiu Elaine às dibradoras, essa “foi uma conquista de gênero”.
“É um espaço que não tinha tido ainda, então para mim representou uma conquista de gênero. Estar lá representando as mulheres é uma busca por empoderamento, uma busca por espaço que a gente não tem e estava lutando pra ter. Acho que o programa refletiu isso nas atitudes das participantes que abriram mão de competir pra ir em busca desse sonho coletivo, uma conquista de gênero mesmo.”
A vencedora, Vivi, nunca havia cogitado ser narradora antes. Ela chegou ao programa sem pretensão alguma, sem nunca ter narrado um jogo, mas com o sonho de de repente poder desenvolver um talento que mal sabia que tinha.
“Sempre fui apaixonada por futebol, mas nunca havia pensado em narrar na minha vida. Alguns anos atrás criei uma web rádio e apresentava programas ao vivo e sempre tive um feedback bacana. Aí certa vez surgiu um concurso pelo Facebook, que seria narrar um pequeno trecho de um jogo feminino. Narrei um minuto do lance da Maurine no Pan Americano de 2015, quando ela faz um gol olímpico. Recebi tantos feedbacks bons que me surpreendi, mesmo estando muito gripada e com a voz ruim quando gravei. Deixei pra lá”, contou.
“Quando surgiu o concurso da Narradora Lays, algumas pessoas vieram me procurar e falaram pra eu tentar. Mas até então jamais pensei que poderia ser uma narradora profissional. Fiz sem pretensão nenhuma,jamais acreditei que veriam meu vídeo.”
Vivi e Elaine chegaram à final do programa depois de ouvirem – ou melhor, lerem – muita coisa. Muitos elogios, mas muitos comentários preconceituosos também. Aquele ‘volta para a cozinha’, ou ‘não dá para aguentar mulher narrando’ ou ‘é muito estranho ouvir mulher narrando’.
Vale uma pausa aqui. Dizer que ouvir uma mulher narrando futebol “é estranho” é extremamente plausível. É estranho mesmo – tão estranho que passamos praticamente as últimas décadas todas sem ouvi-las nesse posto. Desde a década de 1970, quando Zuleide Ranieri Dias comandava narrações de futebol em transmissões 100% feminina na Rede Mulher, tivemos pouquíssimas situações em que mulheres narraram jogos do esporte mais popular do país. Luciana do Valle na década de 1990 foi uma, depois a Copa de 2014 aconteceu uma única narração feminina com Renata Silveira na Rádio Globo e foi só.
Não dá para negar que é estranho, porque não é comum, não estamos acostumados. Mas também não dá mais para aceitar que continue sendo estranho em 2018 e nos anos que virão.
É isso que elas estão querendo mudar. Nas palavras de Elaine, “que o futuro seja de construção”.
“Espero que seja diferente daquela época da Rádio Mulher, quando mulheres estavam lá narrando e acabou e ninguém mais deu seguimento. Que o futuro seja de construção. Que saia desse programa uma narradora, duas, três e que isso seja uma crescente, que não seja só no Esporte Interativo, que aconteça também no programa da Fox, que a Luciana Mariano continue na ESPN, que tenham mais mulheres”, afirmou.
“Pra mim, o futuro da narração feminina tem que ser crescente, com mais opções, dando mais possibilidades de vozes e cultivando isso pra que não seja o diferente, o estranho, que possa ser normal. O momento é de quebrar preconceito, e com isso acontecendo agora, vai servir muito de inspiração para outras mulheres seguirem esse caminho.”
Vivi foi uma dessas que “descobriu” seu sonho ao ver a oportunidade surgindo. Ela não havia pensado em ser narradora, mas hoje se realiza com o microfone na mão dando voz aos dribles e gols dos jogadores (e das jogadoras, quem sabe) dentro de campo. Aos críticos, ela responde narrando a semifinal da Champions League direto do Santiago Bernabéu na próxima terça.
“Provei pra eles em cada narração que posso fazer o que quiser e estar aonde eu quiser. Que competência, trabalho e talento eu tenho. Estou aqui por ser mulher, ser competente e profissional”, disse Vivi.
Ela também acredita que o processo seletivo criado pelo Esporte Interativo é apenas uma porta das várias que se abrirão a partir de agora. “Sempre dizia para as meninas quando uma saía: não estamos fechando portas, mas sim abrindo outras mais. É um trabalho árduo e que sabemos que será feito de pouco em pouco. Foi uma iniciativa que abriu portas e horizontes para a sociedade abrir os olhos e perceber que as mulheres podem estar onde elas quiserem e começarmos assim a quebras os paradigmas culturais enraizados a tanto tempo.”
Para quem não tinha referência de mulher na narração, agora já existem 12 para observar, mais 6 que estão participando do processo seletivo da Fox Sports, mais a Luciana Mariano que narrou algumas partidas pela ESPN e mais quem quiser chegar. O microfone também pode ser nosso.