Os gols ‘bizarros’ da Copa América e o que futebol feminino precisa

Quem está acompanhando a Copa América de futebol feminino (tudo bem que acompanhar, nesse caso, é meio difícil, porque nenhuma televisão está transmitindo, mas a CBF tem colocado sempre os gols da seleção feminina no Facebook, pelo menos), já deve ter notado uma semelhança em todas as goleadas que a equipe brasileira aplicou.

Vamos recapitular, para quem não lembra: começamos com um 3 a 1 contra a Argentina, depois 8 a 0 contra o Equador, aí teve um 4 a 0 contra a Venezuela, 7 a 0 sobre a Bolívia e por último 3 a 1 contra o Chile. Entre todos esses gols marcados, muitos chamaram a atenção por falhas bizarras das goleiras adversárias, que não chegaram em bolas relativamente “fáceis” de acordo com os padrões de futebol que nós estamos acostumados a assistir.

Tudo isso leva àquela velha e repetitiva discussão sobre as dimensões do campo e do gol no futebol feminino. “O futebol feminino assim é chato, qualquer bola é gol”, dizem uns. “Assim como o vôlei tem a rede mais baixa para as mulheres, o futebol também deveria ter diferença nas regras do feminino”, argumentam outros.

O curioso é que é muito raro ver uma pessoa do futebol feminino concordar com essas premissas. Seria plausível pensar em um campo e um gol com dimensões menores dadas as diferenças biológicas entre homens e mulheres? Talvez. Mas o problema é a consequência que isso traria.

Foto: CBF

Vamos pensar racionalmente: hoje em dia, há quantos clubes exclusivos de futebol feminino no Brasil? Quantas escolinhas só para meninas ou equipes que trabalhem a base delas antes de chegar no profissional existem por aqui? Quantas meninas e/ou jogadoras você conhece que conseguiram começar no futebol jogando apenas com meninas? Infelizmente, a resposta para todas essas perguntas é: poucas(os).

A realidade do futebol feminino no Brasil é que ele nasceu e cresceu na contramão. Não à toa acabou proibido por um decreto-lei na época de Getúlio Vargas (1941) e permaneceu assim até 1979. Até hoje, mulheres que querem jogar futebol enfrentam um preconceito imenso que começa muitas vezes dentro de casa, aí não encontram um lugar para jogar, depois vão para clubes profissionais sem sequer terem passado por uma categoria de base, e acabam muitas vezes tendo que conciliar uma outra profissão com o futebol, porque viver só dele para as mulheres é praticamente impossível.

Considerando toda essa realidade, seria realmente plausível/possível imaginar que, caso fossem aprovadas novas regras que redefinissem as dimensões do campo e do gol para o futebol feminino, as mulheres teriam algum lugar para jogar?

Mudar as regras seria praticamente enterrar o futebol feminino e impedir que ele continuasse crescendo – como tem crescido hoje em dia. E é por isso que a maioria das atletas, quando perguntada sobre isso, não pede mudanças na regra, mas sim na estrutura.

Para contrastar com a realidade do primeiro vídeo, basta ver a realidade deste segundo abaixo.

Essa é Stephanie Labbé, goleira da seleção canadense de futebol feminino. Ela tem 1,75m de altura, mas seu alcance no gol vai muito além disso. Talvez a explicação esteja no treinamento que ela faz nesse vídeo. Explosão, impulsão e precisão na reposição de bola – todas habilidades que podem ser treinadas. É claro que a altura facilita, mas ela não precisa ser um fator delimitador.

Foi o que nos disse a goleira titular da seleção brasileira, Bárbara. “Tudo depende da estrutura de cada país, tem muitas goleiras que não têm treinamento específico, não têm treinador de goleiras para orientá-las, inclusive em muitos clubes do Brasil isso acaba acontecendo”, afirmou.

“Se há algo errado, é porque está faltando alguma coisa. Não tem nada a ver com a metragem do gol. Se as goleiras estão indo mal, é porque elas precisam treinar mais. Podemos dar o exemplo da Aline (goleira reserva da Seleção), que é mais baixa, e consegue tirar fácil uma bola no alto, porque ela treina muito e trabalha suas dificuldades”, constatou.

Bárbara, goleira da seleção, pegou pênalti decisivo nas quartas da Olimpíada do Rio (Foto: AFP)

Outra das principais goleiras do futebol brasileiro é Rubi Suzie, do Iranduba – time de Manaus. Ela também tem quase a altura da goleira canadense, e se destacou no Campeonato Brasileiro do ano passado pegando pênaltis e fazendo defesas decisivas para a equipe amazonense – que só foi eliminada na semifinal pelo Santos, que se sagraria campeão.

“Eu fui para o gol meio forçada, mas acabei gostando (risos). Tenho 1,72m, com a chuteira dá para chegar a 1,75m”, diz ela, rindo.

“Ainda assim, é bem abaixo dos homens que atuam no gol, que normalmente têm 1,90m. Mas a gente se adapta ao que tem ali. Porque se for para adaptar (as dimensões do campo e do gol) para o futebol feminino, a gente sabe que nunca vai acontecer. A evolução das goleiras no mundo todo tem sido grande, principalmente por causa dos treinamentos, da estrutura. Porque você se posicionando bem, trabalhando explosão, força, você vai conseguir chegar na bola. Então claro que a altura facilita, mas não é essencial”, afirmou Rubi.

Na foto acima, dá para ver, por exemplo, a altura que a goleira canadense conseguiu pular para impedir o gol. O que mostra que uma boa estrutura de treinamento realmente dá resultado para melhorar o desempenho das goleiras em campo – e estrutura é algo que falta (e muito) no futebol feminino no Brasil.

Uma outra questão a ser considerada é que, por causa da desvalorização da modalidade, as mulheres mais altas envolvidas com o esporte raramente têm o futebol como primeira opção. Em geral, elas acabam migrando para o vôlei, que é uma modalidade mais desenvolvida, cheia de clubes e escolinhas de base espalhadas pelo Brasil e que oferece mais estrutura para as atletas.

Eu mesma conheci uma dessas. Quando jogava vôlei em um time do interior de São Paulo, vi os primeiros passos – ou melhor, as primeiras manchetes – de uma jogadora de futebol nato. Ela tinha 1,80m aos 13 anos de idade e jogava bola como ninguém – mas foi colocada no vôlei pelos pais, que viam futuro na menina em uma modalidade bem mais promissora. Dava para ver a habilidade dela no futebol, já que todas as bolas ela pegava perfeitamente com os pés, enquanto aprendia a fazer os movimentos com as mãos. Resultado? Ela logo passou em uma peneira em Osasco e hoje virou uma das centrais da seleção brasileira.

Infelizmente, o problema do futebol feminino no Brasil e no resto do mundo está longe de ser a suposta falta de adaptação das regras do masculino. Ele tem muito mais a ver com o preconceito que deixou a modalidade no limbo por décadas. Se o nível técnico da Copa América está baixo, é porque a estrutura que se oferece para as mulheres jogarem bola nesses países é mínima – se no Brasil, o futebol feminino já é bastante maltratado, que dirá nos outros países da América Latina.

A prova da evolução delas está nos times europeus, nos Estados Unidos e no Canadá, lugares onde futebol também virou coisa de mulher. Os jogos da última Copa do Mundo em 2015 e da Olimpíada de 2016 provam isso. O nível técnico das fases finais da Champions League também.

O que falta para o futebol feminino ficar melhor e mais “atrativo” não é mudar as regras. É mudar a estrutura. É oferecer escolinha para elas, criar categorias de base, fortalecer os clubes. É isso que vai fazer as traves se tornarem alcançáveis e o tamanho do campo ficar até pequeno para o fôlego delas – o que falta é vontade de quem comanda o jogo, e não de quem tenta aos trancos e barrancos jogá-lo, apesar dos pesares.

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