Foto: EFE/Andy Rain

Desde quando comecei a acompanhar futebol na infância, havia uma coisa que eu não conseguia entender direito – e não, não era impedimento. Era aquela palavra tão difícil de pronunciar que definia aqueles lances tão bonitos de ver. A “caneta”, o “lençol”, o “elástico”, as “pedaladas”, a “lambreta” eram tão mais fáceis de dizer do que aquilo que os resumia: o drible.

Pode até parecer banal para você leitor, já adulto e experiente, achar que a pronúncia de “drible” é um desafio para a língua portuguesa. Mas permita-se fazer o teste: repita comigo “drible-driblar-driblou” por cinco vezes consecutivas e me diga se em nenhuma delas a língua travou? E se não travou é porque você se concentrou muito para não errar. Porque pronunciar a palavra drible nunca é fácil, nem natural – a gente até aprende, mas ela nunca vai deixar de ser difícil.

Posto isso, vamos à origem de tudo. Era mil novecentos e bolinha quando Charles Miller trouxe em sua bagagem direto da Inglaterra o melhor presente que poderia ter nos dado: duas bolas usadas, um par de chuteiras e um livro com as regras do chamado “football”, a melhor invenção britânica de todos os tempos.

Foi com ele que o Brasil aprendeu a dar seus primeiros chutes e foi a partir daí que o futebol passou a existir por aqui. E se as regras do jogo foram importadas de lá, nada mais justo do que as palavras que o definiam também virem junto. Sendo assim, passamos a jogar football, com a ball e ter por objetivo fazer o goal.

Por várias décadas, esses foram os nomes para designar o esporte até então literalmente bretão em terras brasileiras. Os jornais das décadas de 1920, 1930 e 1940 não deixam dúvidas disso: os “teams” se enfrentavam em um “match”, o jogador ia bater o “corner” e o “forward” precisava dar “shoots” para o “goal”. Se alguém era derrubado na área? “Penalty”. E assim por diante.

A maioria dessas palavras foi adaptada para o português. O corner, ainda bem, foi traduzido para uma palavra linda, bem a nossa cara: escanteio. “Goal-keeper” virou goleiro, match virou partida, “forward” tornou-se atacante e assim por diante.

Mas houve algumas palavras que, em vez de traduzidas, acabaram sendo apenas aportuguesadas. Futebol, afinal, nada mais é do que o nosso jeito de dizer “football”. O “shoot” virou chute e o “goal” virou gol, que é bem mais fácil de dizer para nós do que “GOAL” – já imaginou a narração como ficaria? “GOOOOOAAAAAAAALLLLLL” soaria muito esquisito. O “team” virou nosso simpático time, o “penalty” só foi mais enfatizado com PÊ-NAL-TI, etc.

Palavra “football” era comum para definir futebol e “teams” para falar sobre as equipes (Foto: Acervo Museu do Futebol)

Mas e o tal “dribble”, que se referia à arte de passar pelos defensores com uma finta inesperada? Esse sofreu pouquíssimas mudanças – infelizmente, talvez. E uma palavra já difícil de ser falada em inglês, virou quase impossível de se ler em português: DRI-BLE. DRI-BLAR. DRI-BLOU. Esse “r” na primeira sílaba seguido pelo “b” e o “l” da segunda formam o melhor “drible” que alguém já deu na língua portuguesa, de tão difícil de serem pronunciados.

Pois quando o “drible” achou que driblaria os brasileiros inventando uma palavra difícil para definir o que eles melhor sabem fazer, ele foi surpreendido novamente. Foi aí que os brasileiros criaram o “dibre”, uma forma mais fácil e beeem mais carinhosa de chamar nossos tradicionais chapéus, canetas e lambretas.

Ao contrário do “drible”, que é uma palavra que a gente sabe de onde veio, o “dibre” é um órfão de mãe e pai – apesar de todos cobiçarem adotá-lo, tamanha a simpatia do pequeno termo. Ninguém sabe quem foi o primeiro a dizer “dibre” ou “dibrar” ou “dibrou”. O que se sabe é que ele se reproduziu em milhões. Quem nunca disse uma dessas variações quando criança que atire a primeira pedra. Arrisco até a dizer que quem nunca deixou escapar um “dibre” ou outro é porque não viveu o futebol por essência.

A palavra ganhou tantos adeptos, que até mesmo nossos maiores ídolos já a utilizaram. Rivellino era um que não largava o “dibre”. Até Pelé, autor de alguns dos mais bonitos deles, repetia o “dibre” por aí.

Até que um dia apareceu quem o imortalizasse. Ronaldinho Gaúcho, o bruxo, foi quem praticamente patenteou o dibre e o levou para a posteridade. Foi por um tuíte em 2015, que virou meme rapidamente, que o craque brasileiro fez o que todos gostaríamos de fazer há muito tempo: oficializar o direito a dizer “dibre” e não “drible” sem ser hostilizado por isso pelos monitores do português.

 

(Contexto: Ronaldinho havia lançado um game em 2015 e, ao responder uma usuária que dizia “só jogo se for de dibrar”, ele repetiu em alto e bom tom expresso em letras garrafais: “é claro que é um jogo de DIBRAR”).

Esse episódio tão simples foi como a carta de alforria para tantos jogadores, técnicos e apaixonados por futebol que finalmente tiveram uma “autorização” oficial para o uso da palavra “dibre” sem distinção. Não à toa, Muricy Ramalho repetia coletiva após coletiva que gostava de jogador que “tinha o dibre”. Robinho tinha o dibre com suas pedaladas. Ronaldinho tinha o dibre desde aquele lençol em cima da Venezuela em 1999. Romário teve muito o dibre quando deu aquele elástico em cima do corintiano Amaral no mesmo ano. Neymar tem o dibre até de costas.

Eu não sei de onde veio o dibre, mas esses craques não me deixam dúvidas de que ele existe – se não no mais correto português, com certeza no mais puro e genuíno “futebolês”.

(A escolha do nome “dibradoras” em 2015 no início desse projeto não foi coincidência, nem erro de português. O futebol está em nossa essência e o ~dibre também. Esse blog tem por objetivo levantar diversos debates essenciais – o nome dele não seria um desses.)

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