#DeixaElaTrabalhar: A primeira linha tática do futebol é a do respeito

Nos últimos dias, um grupo de mais de 50 jornalistas esportivas deu a aula que todos nós precisávamos ter há tempos: a do respeito. Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, elas soltaram o grito que estava engasgado para todas: #DeixaElaTrabalhar.

É verdade que centenas de comentaristas já deram “explicações táticas” para mulheres em transmissões. E que outras centenas de narradores já fizeram comentários igualmente machistas. E que milhares de torcedores já ofenderam ou assediaram repórteres. E outros tantos colegas ou chefes de redação também já fizeram o mesmo achando que era só “piada”. E que tudo isso foi muito bem “aceito” e considerado normal por muito tempo. Tempo demais, agora elas decidiram dizer: chega.

O movimento não quer crucificar nenhum deles – mas quer deixar todos esses hábitos no passado.

Houve (e ainda há) quem achasse que era o tal “mimimi” – mas houve muito mais suporte. E, principalmente, houve pelo menos quatro episódios nas últimas três semanas que justificam perfeitamente a existência dessa mobilização

Primeiro, a repórter Renata de Medeiros sendo agredida pelo torcedor em Porto Alegre. Depois, Bruna Dealtry, do Esporte Interativo, sendo beijada também por um torcedor enquanto fazia uma entrada ao vivo no Rio de Janeiro. Aí no último domingo, Kelly Costa, do SporTV ouve uma série de xingamentos machistas enquanto trabalha na semifinal do Gaúcho.

E no mais recente deles, um comentário infeliz durante a transmissão do amistoso da seleção brasileira contra a Alemanha por parte de Maurício Noriega na transmissão do mesmo SporTV. “Para as crianças e mulheres que não sabem o que é linha de 4 ou linha de 5…”, disse ele.

Antes de continuar, um parênteses: a maioria das mulheres provavelmente não sabe o que é linha de 4  ou de 5. Mas, pasmem!, boa parte dos homens também não sabe. Aliás, uma imensa parte dos amantes do futebol não sabe. E não tem problema algum, porque não precisa ser especialista em tática para gostar desse esporte tão apaixonante. E também não precisa excluir ninguém do jogo. Um “para quem não sabe” resolveria tudo aí, não é mesmo? Além disso, já imaginaram se houvesse uma mulher comentarista na transmissão? Situação um tanto quanto constrangedora…

São casos como esse que estão vindo à tona agora, mas que SEMPRE aconteceram com qualquer mulher que tentou “se aventurar” no Jornalismo Esportivo. E é uma aventura mesmo, porque tem que ter muita coragem – e muita paciência – para aguentar tantos “volta para a cozinha”, “vai lavar louça”, “gostosa”, “vadia”, “te comeria toda”, “não merece nem ser estuprada” e daí para pior da arquibancada. Sem falar nos assédios moral e sexual dentro das próprias redações. “Ela está usando outros artifícios para conseguir essas informações”; “certeza que está dando para alguém”; “acho que você não consegue dar conta dessa cobertura”, e daí por diante.

Tudo isso sempre foi “normal”. Sempre foi “aceito”. Porque toda mulher que ousasse trabalhar na área esportiva simplesmente já sabia que, para isso, teria de lidar com essas situações e pronto. Faz parte do jeito que a gente foi criada – e que todos foram criados: esporte é coisa de homem, mulher não entende de futebol. E para enfrentar essas tudo isso, usamos sempre aquele bom e velho conselho de mãe “deixa eles falarem, que entre por um ouvido e saia pelo outro”.

Mas nas últimas semanas, 50 jornalistas (que hoje já são mais do que 90) decidiram que não poderia mais ser assim. E elaboraram um manifesto com um recado (infelizmente ainda) necessário.

“Nós estamos no momento propício agora para esse debate. Porque já aconteceram coisas assim antes (torcedor beijando repórter que estava trabalhando) em 2014, e não houve essa discussão. Quando aconteceu comigo, eu tive mais confiança para expor essa situação, fazer um desabafo sincero, sem agredir, sem xingar, e isso teve uma repercussão enorme. O que a gente quer agora é isso: conscientização, debate”, pontuou a repórter Bruna Dealtry, do Esporte Interativo, às dibradoras.

“A grande maioria das pessoas aceitou a campanha porque estamos com a intenção de levantar o debate. Não é competição com homens, não é rivalidade. É simplesmente para a gente poder trabalhar.”

Bruna conta que o apoio que elas tiveram foi enorme até mesmo dentro das redações onde trabalham.

“O diretor do Esporte Interativo enviou uma nota, parabenizou a campanha, pediu para todo mundo aqui dentro refletir suas atitudes com as companheiras de trabalho. É um passo muito bacana, a gente também está repensando tudo o que vivemos. Nós mesmas tínhamos pensamentos machistas, imagina os homens”, ressaltou Bruna.

O protesto das jornalistas não é só contra o assédio e os comentários machistas que ouvem no meio esportivo. É também pelas condições mais básicas de trabalho. Algumas delas contam que já trabalharam em estádios onde não havia banheiro feminino na área de imprensa. Ou seja, elas passavam a transmissão inteira sem beber água para não ficarem com vontade de fazer xixi.

“Nosso principal objetivo é levantar um debate que acaba sendo deixado de lado justamente porque as pessoas consideram ‘algo normal’. Mas queremos dar sequência na pauta. Vamos propor ideias de soluções para problemas que vão desde a falta de banheiro feminino em estádios até o assédio moral dentro das redações e ambiente de trabalho”, explicou Ana Thaís Matos, repórter da Rádio Globo.

“As mulheres estão no esporte faz muito tempo, mas enraizadas numa cultura de que era ‘só brincadeira’. A sociedade está se transformando e está sendo duro pra quem estava acostumado aceitar que, o que tinha antes, hoje não pode mais. Até ontem, os cineastas e produtores achavam ok assediar atrizes, etc., mas após a série de denúncias em Hollywood eles vão repensar suas posturas. E assim vai ser na minha prateleira, que é o jornalismo esportivo.”

Está na hora de entendermos que as coisas estão mesmo mudando. Que se antes era engraçado pedir para uma mulher que gostava de futebol explicar o que é impedimento, agora não é mais. Que mulher pode entender da linha de 4, de 5, do falso 9 e dar um nó tático em qualquer um que duvidar disso. E que tem o direito de trabalhar com o jornalismo esportivo (ou com o que mais quiser) em paz, sem ouvir comentários sobre o seu corpo, sobre o que deveria fazer ou onde deveria estar.

A mudança não virá da noite para o dia, é um processo. Mas ela precisa começar (e já passou da hora disso acontecer).

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