Um campeonato de futebol, a chance de título e a oportunidade de viajar para Barcelona e disputar a final de um torneio com equipes da América Latina, Europa e América do Norte. As personagens – sim, mulheres! – chegaram até ali com o objetivo de fazer história e assim aconteceu.
De um lado, um time chamado Em Campo que nasceu em 2016 de uma parceria da USP-Leste, do PRODHE (Programa de Desenvolvimento Humano pelo Esporte) e do colégio particular Santa Cruz, que resultou em um projeto de futebol para atender as meninas da região. A ideia é proporcionar uma prática esportiva para quem não tem muitas oportunidades de jogar. Um time amador, de comunidade, frequentado por poucas meninas que estão ali, prioritariamente pela prática esportiva e desenvolvimento humano sem priorizar no alto rendimento.
Do outro lado, o ADECO (Associação Desportiva Centro Olímpico) referência esportiva da cidade de São Paulo que desde 1976 forma atletas para o alto rendimento no esporte. As meninas que representavam o Centro Olímpico estão acostumadas a disputar torneios e vencê-los. Recentemente, essa mesma equipe foi campeã da Copa Moleque Travesso, um torneio masculino que aconteceu em 2016 com vitória das garotas que desbancaram os meninos do São Paulo, Corinthians, Portuguesa e Flamengo – deixando até os pais dos garotos muito bravos!
A terceira edição do Campeonato de Futebol GATORADE 5v5 aconteceu no último domingo (25/3) em São Paulo. As partidas disputadas na capital paulista fazem parte de um torneio global que receberá 20 equipes masculinas e 5 equipes femininas para disputarem o título mundial da categoria com as finais programadas para acontecer no Estádio Olímpico em Barcelona nos dias 03, 04 e 05 de maio. Mais do que a final em si, os times campeões da etapa brasileira viverão a experiência completa de um(a) atleta profissional, que inclui um programa de preparação física e fisiológica no Núcleo de Alto Rendimento, em São Paulo e um fim de semana na Granja Comary, casa da Seleção Brasileira, também para treinos.
Mas o que chamou a atenção nesta edição do 5v5 foi que, pela primeira vez, 32 equipes femininas com garotas entre 14 e 16 anos tiveram a mesma chance dos garotos e entraram em campo para brigar pelo título. Taciana Ávila, diretora de Gatorade no Brasil, reforçou que a participação feminina no torneio era uma obrigação da marca. “Nosso objetivo é dar a mesma oportunidade para ambos os gêneros. O universo do futebol feminino não é tão expressivo como o do masculino, mas a tendência é crescer e queremos que esse crescimento seja cada vez mais acelerado”, afirmou às dibradoras.
As disputas eram majoritariamente masculinas. Das 11h às 17h, os meninos foram avançando de fase – começando pelas oitavas de finais, até chegarem na grande final, que aconteceu às 18h. O feminino disputou somente a partida final às 17h, um pouco antes da masculina. E foi no começo da tarde que as meninas começaram a chegar no evento, participar das atividades (mesabol e disputas no PlayStation), além de povoarem as arquibancadas com seus familiares e torcidas.
As histórias
Soraia Santos tem 46 anos, jogou futebol profissionalmente por 20 anos e é a treinadora do Em Campo. Como atleta, Soraia já foi comandada por Sandra Santos e Emily Lima, que atualmente fazem parte da comissão técnica do time feminino do Santos Futebol Clube como coach esportiva e treinadora respectivamente.
Sandra, além de coach, é uma das coordenadoras do projeto Em Campo que completará dois anos em agosto e tem seu principal objetivo bem definido: usar o esporte como impulsionador do potencial humano. “Este é um trabalho social, muito sincero e sem verba de ninguém. O colégio Santa Cruz nos ofereceu um espaço ótimo para treinar com gramado coberto, vestiário, sala de reunião, localizado ao lado do Portão 3 da USP. As meninas do colégio participam de alguns campeonatos pontuais, mas como elas tem acesso a tudo na escola, o Em Campo é majoritariamente ocupado por garotas da comunidade São Remo, do Rio Pequeno, de Osasco e Butantã”, nos contou Sandra.
A primeira aluna a fazer parte do projeto é Isabela Christina, de 15 anos, que também joga pelo time feminino de base do Audax. Inicialmente, Isabela começou a jogar bola na rua, por curiosidade, e depois acabou encontrando um time pra jogar, mas ele era formado apenas por garotos. “Eu era a única menina do time, no começo eu sofri um pouquinho porque eles não queriam tocar a bola pra mim”, contou a jogadora que, entre as craques do Brasil, escolheu Cristiane como sua preferida. “Gosto do jeito dela jogar, admiro muito!”
Maria Eduarda também faz parte do Em Campo e da base do Audax, mas começou a jogar futebol em uma escolinha localizada no Butantã, bairro onde mora. Torcedora do Santos, Duda foi ao Pacaembu ver a semifinal do Paulista entre seu time do coração e o Palmeiras. “Já vi as Sereias da Vila jogar também e a jogadora que eu mais gosto de ver em campo é a Maurine”, afirmou.
Quando perguntamos o porquê do futebol feminino ser pouco valorizado, a resposta das duas foi dita ao mesmo tempo: “machismo, né?!”. “Eles tem muito preconceito e falam que futebol não é pra mulher, que nosso lugar é lavando a louça”, afirmam as meninas.
Do lado do Adeco, Ana Beatriz Giusti, Sabrina Nogueira e Ravena Araújo comentam o quanto é difícil ser aceita como jogadora de futebol no meio dos meninos. “Se estão jogando contra meninas, eles encaram como um dever de ganhar da gente. Se a gente faz uma jogada ou se eles tomam uma caneta, eles ficam de deboche e os pais deles também”, conta a atacante Sabrina. A lateral-direita Beatriz completa dizendo que acaba se acostumando a ouvir e relevar certas coisas. “No começo foi difícil, mas chega uma hora que a gente fica acostumada e não dá mais ouvido.”
As três corinthianas acompanham o futebol feminino do time que torcem, mas na hora de escolher o preferido, a história é outra. “Hoje (domingo) o Centro Olímpico vai jogar contra o Corinthians pelo Paulista Feminino, mas eu estou torcendo pelo Centro Olímpico. É como um amor de mãe, a gente pensa primeiro no filho pra depois pensar no time do coração. O Centro Olímpico é como se fosse nossa família!”, relatam.
Keiko Rocha é mãe de uma das jogadoras do Adeco, a zagueira Mitiê que gosta de bola desde criança. E, por conta da paixão da filha, a mãe, aos 44 anos, passou a praticar futebol com um grupo de mães quinzenalmente. “Faço parte de um grupo de mães da ex-escolinha onde minha filha jogava e a gente se reúne pra jogar bola. Temos um professor pra dar aula pra gente e aos domingos, 7h da manhã, eu já saio com minha mochila pra jogar futebol. Costumo dizer que domingo feliz é domingo com bola, e isso acontece graças à minha filha.”
Keiko conta que incentivou a filha a praticar outros esportes como o Kung Fu ou ballet, mas ela acabou não curtindo. “Achei que o interesse dela pelo futebol não fosse verdadeiro, mas aos cinco anos ela teve essa vontade. Eu não tinha noção do que era futebol até conhecer a escolinha Olímpia, no Campo Belo, onde ela jogou dos 9 aos 13 anos”. A Mitiê passou a jogar pelo Centro Olímpico depois de um amistoso entre sua ex-escola e o atual time, durante a Copa Moleque Travesso. Ela era a única menina e capitã da equipe.
Além do futebol, Mitiê estuda, faz kumon e ainda pratica atletismo. O pai trabalha na parte da manhã e tem a tarde livre só para acompanhar a filha nos treinos. Keiko aposta na carreira da filha e espera vê-la na seleção de base em breve, assim como já aconteceu com outras cinco meninas do ADECO que já fazem parte da equipe brasileira.
Como incentivo para a final, a mãe fez questão de preparar um bolo de chocolate e levar para as jogadoras. “É pra dar sorte. Eu fiz o mesmo no último jogo e elas disseram que ajudou. Então, pra hoje, eu fiz de novo. Vamos ver!”
A final
Em campo, as duas equipes femininas estavam eufóricas. O jogo foi bastante equilibrado com o Em Campo abrindo e placar e sofrendo a virada do ADECO por 2×1. No segundo tempo, o empate veio e assim acabou o tempo regulamentar.
A vitória do time da comunidade veio nos pênaltis com defesa da goleira Jéssica, uma baixinha gigante que jogou improvisada na posição. “Eu não sou goleira. Me candidatei pra ajudar a equipe na competição”, disse.
No torneio masculino, o time Tancredo Neves derrotou a equipe Amorim (ambos de São Paulo) e foi bonito presenciar a festa única dos garotos e das garotas que partirão juntos para Barcelona em busca do título mundial.
Em meio a tanto preconceito e falta de espaço para jogarem futebol, o título do Campeonato de Futebol GATORADE 5v5 pode ter mudado, pra sempre a vida dessas garotas. A equipe campeã ainda precisa de meninas para compor o plantel. “Temos 70 vagas disponíveis, oferecemos o esporte gratuitamente e o time conta com oito profissionais dedicados ao projeto”, reforça Sandra, a coach que, mesmo longe, se emocionou demais com a conquista de suas meninas. “Sou como elas, também vim de uma comunidade e sei que elas precisam apenas de uma oportunidade e de gente que acredita nelas. Hoje eu sou o que sou porque, aos 14 anos, uma professora me deu uma oportunidade de chegar onde eu quisesse”, relatou a coach esportiva de Emily Lima no Santos, com passagem pela seleção brasileira feminina.
E com o término do evento, foi possível ver as campeãs partindo para suas casas com mais um sonho a ser realizado. Deram a chance e elas souberam aproveitar. E a música que encerrou o evento não poderia ter refrão melhor: “Por isso vê lá onde pisa, respeite a camisa que a gente suou. Respeite quem pode chegar onde a gente chegou.”
*Angélica Souza e Roberta Nina participaram do evento a convite da Gatorade Brasil.