A Fórmula 1 infelizmente ainda é uma categoria 100% masculina entre os pilotos, mas para os brasileiros, ela tem uma presença feminina marcante há pelo menos 10 anos. Mariana Becker, da TV Globo, é a repórter reconhecida como “a cara do automobilismo” por aqui já que está à frente da cobertura de todas as temporadas da F1 desde 2008.
Mais do que aparecer na frente das câmeras, Mariana sabe do que está falando e coloca em prática seus conhecimentos sobre as quatro rodas se aventurando no volante em outras competições, como o rally dos sertões – pilotando na categoria imprensa, ela chegou em primeiro lugar em 2003 ao lado de Roberlena de Moraes (da antiga Revista 4×4&Cia), deixando todas as duplas masculinas concorrentes para trás.
Amante dos esportes radicais, a repórter já foi do surf e da vela antes de chegar para ficar no automobilismo. Hoje, ela admite que o sonho que falta realizar na carreira é poder ver uma pilota na pista, ao lado dos homens.
“De uma maneira geral, o que eu ouço aqui é que as mulheres não têm capacidade de pilotar um Fórmula 1. Eu nunca vi, mas pelo que eu conheço do esporte, toda mulher é capaz de fazer qualquer esporte. Ela não é capaz de ser halterofilista? De fazer levantamento de peso? Salto com vara? Não é capaz de ser nadadora? então é capaz de pilotar Fórmula 1, por princípio”, afirmou às dibradoras.
“Pela lógica, não vejo por que não. Talvez vá ter que malhar mais o pescoço, só isso. Gostaria muito de ver uma mulher pilotando um Fórmula 1. Uma mulher que não esteja dentro de uma equipe pra fazer o papel de bonita, como aconteceu um tempo atrás quando poucas tiveram a chance de pilotar e, quando muito, num dia de teste dentro de um circuito fechado. Espero um dia ver. Essa pessoa que chegar, vai contar com meu apoio”, reforçou.
Quem sabe agora com a colombiana Tatiana Calderón contratada como piloto de testes da Sauber Mariana ganhe uma nova companheira no grid e possa realizar o sonho de entrevistar ali uma mulher no comando de um carro da Fórmula 1.
Início
Mariana Becker cresceu em Porto Alegre e ainda na adolescência descobriu seu faro por reportagem. Aos 17 anos, quando participava de campeonatos de surf viajando pelo Brasil, ela decidiu ir além de sua função dentro da água e fazer uma “cobertura” das competições, oferecendo boletins para rádios e jornais locais.
“Eu achava legal coisas que mulheres tinham feito como pioneiras. E aí comecei a escrever ainda na escola. A primeira matéria que publiquei foi num jornal pequeno em Porto Alegre sobre a primeira mulher que voou de asa delta no Rio Grande do Sul. Depois a primeira surfista de lá, aí depois comecei a ir pra esses campeonatos de surf, e fiz uma matéria com Andreia Lopes, ela tinha sido a primeira mulher a ganhar o Brasileiro, tinha 16 anos – eu tinha 17”, contou.
Logo que se formou em Jornalismo, em 1994, Mariana teve a chance de ir trabalhar na área de esporte da Globo e, alguns anos depois, teve seu início no automobilismo de uma maneira ousada.
“Eu entrei no automobilismo por ser metida, porque eu sempre queria me meter nessas coisas que eu não conhecia. Sempre fui muito aventureira. Aí do nada um cara me ligou e falou: você não quer correr o rally dos sertões? E eu fui.”
“Eu sentia, naquela época, que o automobilismo era uma coisa um pouco incompleta. Ninguém sabia a emoção do automobilismo, não sabia o que o cara estava sentindo dentro. Só via que o Ayrton estava cansado, não conseguia levantar troféu, mas o que acontecia no carro? Eu fui fazer o rally e levei uma microcâmera e fui mostrando o que era ali dentro”, explicou.
O rally
Quem pensa que Mariana passou por uma grande preparação antes da experiência de passar 10 dias rodando em paisagens desafiadoras ao redor do país com um veículo que nunca havia dirigido antes vai se surpreender com o que realmente aconteceu.
“Não fiz nenhuma preparação, um cara me ensinou como era a parada e fui com a cara e com a coragem. Queria fazer algo muito legal, mas ninguém achava que isso ia dar certo”, contou.
“Nos primeiros dias eu tava só preocupada com jornalismo. Depois comecei a competir mesmo. Isso te estimula e você começa a ir muito além dos seus limites. No quarto dia de competição, um cara morreu, e aí que eu tive noção…vi que minha vida estava muito em risco ali. Mas foi uma experiência incrível, foi o rally dos sertões que me fez gostar mais de automobilismo.”
Isso foi no ano 2000. Em 2002 e 2003, Mariana Becker voltou ao rally dos sertões, mas desta vez para pilotar e competir de verdade.
“Eu sempre escolhia uma mulher para ser minha navegadora. Ali funciona assim: cada dia, você recebe um mapa com um trajeto. Como a gente está indo muito rápido, não dá para eu mudar a aceleração quando vir a curva. Por isso preciso da navegadora para me falar sobre o percurso, avisar que tem curva a 500 metros, etc.”
Mas entre as aventuras que podem ser vividas em um rally dos sertões, algumas podem ser bem piores quando são apenas mulheres dentro do carro. Foi o que aconteceu com Mariana e sua dupla em um desvio de rota onde acabaram atolando e tendo uma experiência nada agradável.
“A gente quebrou, saímos correndo as duas, achando que o carro iria explodir. E aí ficamos esperando reboque no meio do nada. O rádio não pegava, o telefone também não. Aí na madrugada apareceu o reboque, a gente estava até escondida na mata com medo, imagina duas mulheres sozinhas ali no meio do nada”, relatou.
“Só que, pela regra, eles só poderiam nos rebocar até a cidade mais próxima e de lá teríamos que nos virar. Aí nos levaram até o único o único posto de gasolina que tinha ali. Só tinha cara bêbado olhando para nós. A navegadora estava de shorts. Aí quando pedi o guincho no posto, o cara me deu um preço. Quando ele foi acertar, olhou por cima do meu ombro, e falou que não podia mais me levar. Aí eu vi que o coronel da cidade estava do lado ali dizendo que não. ‘Vocês vão dormir na minha casa’, ele repetia.”
Diante dessa situação, Mariana pediu ao reboque uma ajuda. E só assim elas conseguiram deixar aquele posto e ir em busca de um lugar mais seguro.
Não foi só dessa vez que a repórter-pilota se sentiu em uma situação inferiorizada por ser mulher.
“No rally, tinha sempre o mesmo cara que vinha antes da largada nos explicar como era para fazer. ‘Não se assusta’, ele dizia. Invariavelmente a gente passava por ele e toda vez ele explicava novamente.”
Cobertura na F1
O primeiro Grande Prêmio que Mariana cobriu foi o do Brasil ainda em 1996, quando ela ainda era novata no automobilismo. Depois disso, foi fazendo coberturas pontuais na Fórmula 1 até ser escalada para cobrir a temporada toda pela primeira vez em 2008 – bem aquela em que Felipe Massa quase ficou com o título.
“O mais legal da Fórmula 1 é quando a história se faz na sua frente. E lá em 2008 eu pude acompanhar a temporada toda do Felipe. Ele quase foi campeão do mundo, teve um fim dramático e emocionante naquela corrida final. Depois teve o acidente dele, em que eu também estava e disse pra mim mesmo: não acredito que eu vou ter que cobrir isso. Eu achava que ele tinha morrido”, contou Mariana.
Mas nem todos os momentos foram de agonia. A repórter teve a chance que todo brasileiro desejou após aquela fatídica ultrapassagem de Rubinho Barrichello em cima de Michael Schumacher em 2010, no GP da Hungria. O episódio foi uma certa revanche para Rubinho, que em 2002 estava liderando a corrida e acabou cedendo a ultrapassagem para o alemão para atender uma solicitação da Ferrari. Em 2010, foi a vez de a narração se completar: hoje não, hoje não, e hoje não mesmo – e o brasileiro quase acabou batendo no muro diante da reação de Schumacher, que o forçou contra a parede, sem dar espaço, mesmo vendo o rival mais rápido ao seu lado.
“Esse foi um dos momentos mais marcantes para mim. Tive o prazer de perguntar para o Schumacher: você acha que foi correto, justo, o que você fez com o Rubens? Ele respondeu daquele jeito: ‘teve espaço para ele passar, tanto que ele passou’. E depois fui falar com Rubinho, ver o que ele sentiu na hora. Todos nós brasileiros queríamos esse momento, foi uma lavada de alma”, finalizou.
Em seu trabalho no padock, Mariana conta que não costuma sofrer assédio dos pilotos ou de outros membros da F1, mas diz que já houve um tempo em que colecionava situações embaraçosas em que homens queriam explicar o que ela já estava careca de saber. “Sempre tem alguém que acha que você não sabe e quer te explicar como fazer o seu trabalho. É preciso muita paciência e jogo de cintura nessas horas”.
De qualquer forma, a repórter diz que foi no esporte onde aprendeu que desistir não é uma opção. Por isso, lá vai ela para mais uma temporada na Fórmula 1, mostrar para todos que carro e velocidade também é coisa de mulher.