Há menos de um ano, a CBF anunciou com orgulho aquela que talvez tenha sido sua decisão mais acertada da história. Pela primeira vez, a Confederação colocou uma treinadora capacitada para comandar uma seleção de futebol, com Emily Lima assumindo o cargo em novembro de 2016 no lugar de Vadão. Emily tem as licenças da própria CBF (algumas que nem os técnicos do masculino têm), coleciona cursos e anos de experiência em times de tradição no futebol feminino, como o São José. Era, acima de tudo, a pessoa mais preparada para o cargo.
Com essa atitude, a entidade que sempre foi vista como retrógrada e atrasada no futebol, ganhou fama de “moderna”. Mesmo ainda comandada pelos mesmo homens coronéis do passado, a CBF ganhou créditos pela sua atitude. E Emily chegou prometendo o que a seleção feminina nunca viu: trabalho, planejamento, análise de desempenho, avaliação de atletas em todo o país.
Mas aí vieram três derrotas contra uma das seleções que mais tem se fortalecido nos últimos anos e, menos de um ano depois do anúncio “revolucionário”, a CBF decidiu demitir Emily Lima do cargo. Foram 10 meses no cargo, nenhuma competição oficial, apenas 13 jogos e um aproveitamento de 56,4%, mas a entidade entendeu que “por questão de resultado”, não dava mais para seguir com Emily no posto.
É importante analisar números e o contexto de tudo isso. Pela primeira vez, a seleção contou com um planejamento minucioso de amistosos para enfrentar apenas seleções das primeiras posições do ranking. Entre os adversários que a seleção comandada por Emily enfrentou, só uma era sul-americana – a Bolívia, que foi goleada pelo Brasil em abril deste ano. De resto, Espanha, Islândia, Alemanha (campeã olímpica), Estados Unidos (campeão mundial), Japão, Austrália. Em dezembro do ano passado, ainda tivemos Itália, Russia e Costa Rica como adversárias no Torneio Internacional de Manaus, mas apesar de termos vencido os jogos facilmente, a data da competição não era oficial da Fifa e portanto todas as seleções estavam com desfalques.
Diante desse cenário, Emily encerra sua participação na seleção com 7 vitórias, 5 derrotas e um empate – de novo, em menos de um ano no cargo e sem nenhuma competição oficial. Entre os últimos cinco técnicos da seleção, nenhum teve tão pouco tempo de trabalho – o que eles têm em comum? Todos são homens.
Kleiton Lima: março de 2009 a novembro de 2011
Jorge Barcelos: novembro de 2011 a novembro de 2012
Márcio Oliveira: novembro de 2012 a abril de 2014
Vadão: abril de 2014 a novembro de 2016
Todos, menos Márcio Oliveira, disputaram competições oficiais. Kleiton Lima disputou o Mundial de 2011, Barcellos disputou os Jogos Olímpicos de 2012, Vadao disputou Copa América, Mundial e Olimpíada.
Desde Renê Simões, aliás, que comandou a seleção na inédita medalha de prata na Olimpíada de 2004, nenhum técnico havia tido tão pouco tempo para comandar a seleção feminina quanto Emily.
A CBF ainda não se manifestou sobre a demissão, mas em contato com as dibradoras, a treinadora disse que a alegação da confederação foi “resultado”. Em 10 meses, a suposta falta de resultados de Emily na seleção foi o que pesou para a demissão dela, segundo a entidade.
A comparação com aproveitamento de outros técnicos é difícil, porque todos tiveram mais tempo que Emily e enfrentaram seleções mais fáceis. O título da Copa América que Vadão ostenta é aquele que a seleção feminina nunca perdeu, porque as seleções sul-americanas infelizmente têm um nível muito abaixo na modalidade. Nos últimos 10 meses, enfrentamos adversários de peso e, acima de tudo, vimos evolução tática.
As próprias jogadoras nos diziam em entrevistas sobre o bom trabalho dessa comissão técnica, a estratégia de jogo, o fato de jogarem mais com a bola no chão, com uma marcação mais apertada. Emily promoveu testes regionais com atletas de todo o país na seleção, algo que nunca havia sido feito antes. Avaliava o desempenho real de cada uma. Trabalhava incansavelmente para conseguir implantar a sua ideia de jogo – algo muito difícil, quase impossível, quando você só consegue reunir as jogadoras dois ou três dias antes de amistosos.
Quando a realidade de cada uma é tão diferente – há as que jogam na Europa, com toda a estrutura, e as que atuam em times brasileiros que infelizmente não contam com o mesmo aparato. Diante de tudo isso, é mais do que injusto demitir Emily em menos de um ano de trabalho por derrotas em amistosos contra uma seleção forte, em um país que investe mais na modalidade do que o nosso (foram 3 derrotas contra a Austrália, uma por 6 a 1, outra por 2 a 1 e outra por 3 a 2).
E é inevitável não questionar: teria acontecido se ela fosse um homem? Fosse Vadão, Kleiton Lima, Barcelos ou qualquer outro na mesma situação, com 56% de aproveitamento em 10 meses de trabalho, sem qualquer competição oficial disputada, ele teria sido demitido?
Emily diz que sua demissão aconteceu por 3 motivos: por não se dar com o coordenador (Marco Aurelio Cunha), por ser mulher e por não saber ser política.
Os números e a falta de argumentos plausíveis fazem com que nos questionemos: por que, então, a CBF trouxe uma mulher para o cargo? Só para poder dizer que “tentou, mas ela não apresentou resultados” e comprovar a ideia que ela – e o próprio coordenador de futebol feminino, Marco Aurélio – sempre propagaram de que “mulheres precisam se preparar para assumir esse cargo”? Como se Emily não fosse preparada.
Como se Dunga, na seleção masculina , fosse preparado quando assumiu o time da primeira vez sem nenhuma experiência. O próprio Dunga, aliás, teve mais tempo do que Emily em sua segunda passagem pela seleção, quando ele assumiu em 2014 e acabou demitido em junho do ano passado após acumular vexatórias campanhas nas Eliminatórias e em duas Copas Américas – essas, sim, competições oficiais.
Agora fala-se em trazer de volta o próprio Vadão, demitido há menos de um ano da seleção e que já foi demitido do Guarani, que disputa a Serie B do Brasileiro. Qual é a lógica ou o planejamento dessa confederação que alega falta de resultados para demitir o trabalho mais planejado e embasado que já teve nos últimos anos com apenas 10 meses de execução? Qual é a explicação que ela pretende dar à própria Fifa, que tem cobrado cada vez mais as entidades para terem mulheres no comando do futebol feminino?
Com essa decisão precipitada e injusta, a CBF atenta contra o desenvolvimento do futebol feminino no país e mostra que não se importa nem um pouco com a sua seleção. Ela quer no comando quem incomode menos – isso Emily definitivamente não é. Independente de quem virá agora, o futebol feminino precisará de forças para se reerguer e lutar contra os cartolas que insistem em fazer de tudo para ignorar sua existência.